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18  06 2008

Rota turística

Hoje fui fazer uma visita turística pela capital angolana.

A descrição oficial poderia ser algo assim: “Passei nos pontos mais importantes. Fui à Fortaleza, vi o Palácio Presidencial, o Porto de Luanda, a fábrica da cerveja Cuca, os mercados populares, etc.”

Mas a verdadeira história não tem palavras que a descrevam.

Grande parte da visita foi nos bairros de lata (de tijolo e chapa zincada) que estrangulam Luanda. Estava à espera de um panorama mau. Nalguns casos fui pessimista, como no amontoado das casas e na utilização de qualquer recanto para se desenvolver uma actividade económica que permita subsistir. Noutros casos fui demasiado optimista. O lixo é o maior problema de Luanda.

A vida nos musseques é de uma miséria conformada. Os bairros crescem ao longo de uma vala intransponível. As linhas de água do terreno surgem vincadas na paisagem com um traço escuro, na maior parte das vezes cinzento ou verde, ladeado de duas faixas claras, garridas às vezes. Nasce um rio que separa os musseques em duas margens. É um rio de águas da mucanha (a água com que se lava os pratos e o corpo), de efluentes vários, de óleos e gasóleos, de restos de comida e de muito plástico esfarrapado. De vez em quando há uma ligação entre as margens. Na maior parte dos casos uma travessia improvisada com sucatas que já ninguém quer (o que é quase impensável porque aqui tudo se aproveita até à completa inutilidade), que nos permite percorrer aquela meia-dúzia de metros em equilíbrio instável sobre uma chapa com pouco mais que a largura dos pés e chegar ao terreno seco da outra margem. Na outra margem o chão seco parece pantanoso. Depois percebemos que não pisamos terra. Caminha-se sobre uma massa de plásticos rasgados que se foram misturando com a lama e o pó. A sensação é estranha a princípio, porque parece que se enfiou o pé numa poça cheia de alguma coisa muito mal-cheirosa…

As ruelas são tortuosas. Algumas não permitem o cruzamento de duas pessoas lado a lado, outras já são suficientemente largas para que não se consiga tocar com as mãos nas paredes e as avenidas já permitem a passagem de um carro.

Crianças brincam com garrafas de óleo e vão-nas enchendo com a água que escorre no meio da rua. Todas têm um aspecto sadio e vigoroso. Não se vêem gatos por lado nenhum. Cães há alguns. Todos com o habitual aspecto de rafeiro e muitos com sarna e tinha. Normalmente dormem no meio da rua, completamente desinteressados dos jogos e correrias dos putos. Há galinhas com pintos em todos os cantos. De vez em quando aparece um pato com um ar miserável. Perto do aeroporto vi uma cabra e dois cabritos a pastar numa ilha de plástico no meio da vala. Não sei o que comiam. Não consigo imaginar. Ao fim do dia, perto da fábrica da Cuca, vi uma porca e dois leitões a foçar no meio de um monte de lixo. A miséria também se vê nos animais.

A visão de dois brancos no meio do musseque espoleta discussões entre os miúdos acerca de qual dos brancos é o mais bonito. “O branco mais bonito é o dos óculos negros!”. Na verdade o que é mesmo bonito são os óculos. O branco é indiferente…

As obras por todo o lado, que cortam estradas ao meio e interrompem ligações, causam o caos numa cidade já de si caótica. “Dizem que para Agosto está pronta… mas não deve ser deste ano”.

Tirando algumas (poucas) estradas principais, todas as outras são uma sucessão de buracos onde não se consegue distinguir muito bem onde termina um e começa outro. No meio daquela superfície encarquilhada vai-se navegando e progredindo sempre a passo de caracol, colado ao carro da frente, do lado, de trás e do outro lado. Às vezes surge uma lomba, mas é quase chover no molhado. Nas bermas das estradas acumula-se lixo. Se houvesse asfalto quase se poderia dizer que era uma imitação do aspecto das valas dos musseques.

No entanto, no meio de tanto lixo, há quem não desista. Há varredores cuja tarefa inglória é limpar dez metros de estrada e ver que assim que acabam é preciso recomeçar. O lixo que varreram foi substituído por outro fresquinho.

Em cada rua há uma oficina de mecânica e bate-chapas. Especialistas na reparação de tudo o que se assemelhe a um maquinismo. Por vezes usam ferramentas improvisadas, na maioria dos casos nem ferramentas usam. Um carro é reparado, reconstruído, transformado até se tornar num pedaço de chapa ferrugenta que já não se pode usar para nada. Nessa altura é abandonado onde estiver.

Ontem tinha falado dos vendedores de rua, que fornecem tudo. Hoje, no mercado dos congoleses, tive um panorama melhor do que é a venda informal. Vende-se absolutamente de tudo. Vi uma banca com pregos usados… e mais não digo.

Notei diferenças marcadas entre os musseques do Sul e os do Norte. No Norte de Luanda há mais gente, mais confusão. Mais candongueiros a berrar o destino e o preço da viagem. Mais lixo.

Seria de esperar que as pessoas andassem sujas, mas não, na grande maioria andam bem arranjadas. Modestas mas arranjadas. Tirando os carregadores, operários e mecânicos, as pessoas andam limpas. Tenho a sensação de que aprenderam a desviar-se dos salpicos de lama, das poças fundas e dos encostos nos carros e que o fazem de uma forma tão automática que nem se dá por isso. Acho que se atravessasse duas ou três dessas ruas dava por mim coberto de lama dos pés à cabeça. E com lama quero dizer aquela pasta de urina, óleo e terra que corre nas ruas.

Não tirei fotografias. Talvez o venha a fazer. Mas nunca fariam jus ao que vi. Mas houve uma imagem que me ficou na memória. Em vários sítios vi um miúdo a correr à frente do carro. Umas vezes descalço, outras vezes de ténis. Ora de calças, ora de calções. De cabelo curto ou comprido. Pareceu-me ser uma boa imagem da vida dos angolanos das gerações pós-guerra. É preciso correr à frente da miséria, não deixar que ela nos apanhe. Mas já apanhou.

Há mais para dizer, mas desta vez fico por aqui…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “Rota turística”

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  1. Creio que conheceste Luanda profunda com o que tem de bom e mau.
    É triste conhecer a miséria de um país e mais triste é saber que não podemos fazer nada para mudar.

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