Os quilómetros…
Afonso Loureiro
Quem chega a Angola e começa a ouvir os nomes dos locais, é capaz de achar que há uma certa histeria colectiva em torno das distâncias quilométricas.
Quando se fala das praias a sul de Luanda referimo-nos a elas com as do km 55, km 26 ou km 33. Da mesma forma, uma pequena povoação a caminho de Catete tem o singelo nome de km 40.
Durante séculos aquela povoação foi apenas a aldeia que todos conheciam. Não precisava ter nome. Cada um sabia que era a sua casa. Noutros lugares, outras aldeias se erguiam e partilhavam o anoniamato oficial. Estavam tão isoladas que não precisavam de mais essa complicação.
Apenas os mercados e os grandes centros tinham nome. Lá, onde morava muita gente ou se cruzavam muitos estrangeiros, havia a necessidade de invocar o nome de uma terra que não a sua. De resto, quase todos cresciam, viviam e morriam à vista da aldeia onde nasciam. Só com a abertura de estradas e a crescente mobilidade das populações é que passou a ser necessário baptizar cada aldeia e cada lugarejo.
Passou-se a ter uma forma de medir a progressão ao longo do caminho. Em vez de se contar o número de rios que se cruzava e o número de povoações onde se parava, é muito mais simples memorizar e organizar mentalmente se se derem nomes aos lugares. Cria-se um mapa mais completo com nomes. Aliás, um dos propósitos da contrução de mapas é a atribuição de nomes aos acidentes geográficos.
Algumas aldeias, por não haver consenso quanto ao seu nome, herdaram a designação do marco quilométrico mais próximo. Houve uma inversão das hierarquias e a estrada sobrepôs-se à povoação. A comunidade do km 44 apenas se chama assim porque a estrada fez aquele exacto número de curvas até lá chegar…
Por outro lado, quem sempre morou na aldeia, não se preocupa muito com o seu nome oficial. É a aldeia, é a sua casa. E, se calhar, até é feliz por saber que com aquele nome, todos sabem onde fica.
Este fenómeno não se restringe só Angola. Por todo o continente africano há milhares de aldeias anónimas, cujo nome é desconhecido até pelos seus habitantes. Também na Guiné há muitas tabankas que só se chamam tabanka. É a aldeia e basta.
“Apenas os mercados e os grandes centros tinham nome. (…) Só com a abertura de estradas e a crescente mobilidade das populações é que passou a ser necessário baptizar cada aldeia e cada lugarejo. (…)”
Não era bem assim. As aldeias tinham de facto um nome, que era o nome do detentor do poder tradicional nelas residente: regedor, soba, sobeta ou o que fosse. Quando este morria, as aldeias tomavam o nome do sucessor, deixando de se chamar ( a aldeia de) Fulano e passando a chamar-se (a de) Sicrano.
Há situações em que o nome da localidade deixou de mudar em função do chefe, conservando o nome de um chefe já falecido. É o caso, nomeadamente, da capital da Lunda Sul, a cidade de Saurimo, o “senhor Urimo”.(“Sa” significa senhor e entra na composição de muitos nomes, que se tornaram, inclusive, apelidos. Veja-se, por exemplo, o apelido Savimbi.)
Compreende-se que as aldeias devam ter uma designação qualquer, nem que seja o km da estrada. Os casamentos nas sociedades tradicionais angolanas são, em geral, feitos com pessoas de fora da aldeia natal do noivo ou da noiva. Como poderia alguém dizer “a minha esposa (ou o meu marido) é da aldeia tal?”
Desculpe o reparo. Faço-o porque gosto muito deste seu blogue. Força nesse teclado…