Grua sempiterna
Afonso Loureiro
No Kinaxixi há um prédio famoso. Inacabado desde as vésperas da independência, o prédio da lagoa passou a ser um ex-líbris de Luanda.
Durante vinte anos esteve desocupado, mostrando apenas o seu esqueleto e as paredes de tijolo por rebocar. Com a guerra civil de 1992, milhares de novos refugiados procuraram a capital e acabaram por ver naquela estrutura um abrigo temporário.
Os andares foram sendo divididos e ocupados ao sabor das necessidades. O abrigo temporário passou a permanente num instante. A cubatização vertical instalou-se depressa.
Como não ainda não tinha redes de águas, esgotos ou electricidade, cada um se desenrascou como podia. Os geradores e os depósitos começaram a ganhar lugar aqui e ali. À noite conseguimos descortinar as luzes amareladas e trémulas que os geradores velhos e as velas produzem.
Os poços dos elevadores foram selados e transformados em conduta de lixo. Os relatos mais actuais dizem que o lixo já chegou ao décimo andar. Faltam poucos até ao topo. Todo o lixo que não cabe aqui é atirado para as traseiras, onde formou uma pilha desordenada que já dava pela altura do segundo andar. Entretanto foi removida à custa de camiões e escavadoras. Não demorou muito até que começassem a chover novas imundícies no lote acabado de limpar.
Parceira do prédio inacabado ao longo dos últimos 37 anos, uma grua amarela foi enferrujando ao sabor do clima tropical de Luanda. À medida que envelhecia, tornou-se cada vez mais um perigo, ameaçando desistir da verticalidade a qualquer década.
O edifício está bem mais perigoso e já foi causa de morte a muita gente, que caiu pelos poços das escadas sem corrimão. As próprias obras que foram sendo feitas nos vários andares e os depósitos de água e geradores espalhados um pouco por todo o lado deixaram a estrutura não se sabe bem como.
Prédio da Lagoa
Pelo Jornal de Angola, fiquei a saber que a culpa desta situação é única e exclusivamente do colono, que nem se deu ao trabalho de terminar o prédio ou remover a grua. O culpado do costume, pelo acusador oficial do costume.
Subitamente, passou a ser desígnio nacional desmontar a grua. Jornais e televisão só falavam da grua e dos seus malefícios. Discorriam acerca de todos os sítios onde poderia cair. Faziam previsões acerca do número de mortos, feridos e assim-assim. De vez em quando falavam do prédio. Lá diziam alguma coisa acerca da demolição há muito programada mas depois mudavam de assunto. A grua era muito mais importante!
Algumas das principais artérias da cidade foram cortadas durante dias, complicando ainda mais o trânsito que já se achava impossível piorar. A grua passou a ser o centro das conversas até que toda a gente se cansou dela.
Alguns dias depois, o circo mediático cessou. A grua sumiu-se, pensei, foi desmontada e transformada em sucata. Fica só o prédio, que aguarda a mesma sorte.
É claro que me enganei. A grua continua lá, estóica, pronta para aguentar mais umas décadas ao lado do prédio da lagoa.
XARAM!
Esse prédio é tão conhecido, que amigos meus achavam que as fotos desse predio tiradas de diferentes perspectivas consistiam em predios diferentes. Como tal, o que pensavam era que todos os prédios em Angola eram iguais a esse.
Não há por aí um sucateiro que queira comprar todo esse metal?
Se por cá roubam cabos eléctricos e placares das estradas, de certeza que também levavam a grua às prestações 🙂
Infelizmente prédios como esse não são exclusivos de Angola, no Laranjeiro (Almada) também está lá um assim..
grande abraço
Não seria caso para a embaixada de Angola em Lisboa, com a colaboração atenciosa do ministério dos negócios estrangeiros português, providenciar a localização do colono construtor (ou seus herdeiros) e intimá-lo a ir acabar o que começou? O jornal de Angola por certo também não deixaria de
ajudar (na procura), digo eu.
Um abraço caro Afonso.
Eu até escrevia uma resposta com ironia à altura, mas depois ainda era mal interpretado…
Eu também acho… e as gruas, quando menos se espera caiem-nos em cima. Mas ficou a ideia.
Em Portugal por falência dos seus construtores, também existem alguns prédios nas mesmas condições. No caso presente, os seus ocupantes tiveram azar, porquanto anos antes alguns se anteciparam, ocupando prédios 100% habitáveis.No entanto, não é nada que meia dúzia de diamantezinhos não possam resolver, dando assim uma vida
digna de ser humano.