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19  03 2009

Lenda da Kiela

O jogo da Kiela costuma ser encarado como o xadrez africano. São ambos jogos de estratégia, que beneficiam o jogador menos impaciente e com melhor visão do jogo. Ambos têm lendas associadas. O xadrez tem a lenda dos grãos de trigo duplicados em cada casa como pagamento ao inventor do jogo. A Kiela tem uma lenda que começa com uma história de guerra e acaba com a Paz.


Jogo de estratégia

Contam os mais-velhos que a Kiela é um jogo de sábios, nascido da vontade de poupar os filhos das guerras sangrentas que os vários povos travavam entre si.

Reza a lenda que, há muitos séculos, duas tribos que se guerreavam desde sempre iniciaram mais um capítulo da sua história de violência. Emissários do exército atacante dirigiram-se à capital do reino vizinho, comunicando a inevitabilidade de uma batalha como nunca antes se tinha visto. Essa batalha resultaria na aniquilação daquela tribo. Todos os sobreviventes seriam feitos escravos e a memória do reino seria como o pó, arrastada pelo vento. Seria melhor capitular já, para evitar derramar tanto sangue.

O velho rei convocou os seus generais, para decidir que resposta dar aos emissários, que aguardavam impacientemente. Os guerreiros garantiam que a derrota não era certa, mas a vitória também não estava garantida. As forças de ambas as tribos eram muito semelhantes e o único desfecho assegurado era um banho de sangue.

Enquanto entretinha os embaixadores, fazendo-os refrear os ânimos, convocou também o seu conselho de anciãos, para que se encontrasse uma solução para o problema.

Ao fim de alguns dias, o mais velho dos mais-velhos sugeriu que se partisse para a guerra. Antes de poder concluir o seu raciocínio, foi interrompido por todos os outros, dizendo que não era isso que se pretendia. Lá conseguiu continuar. Guerra sim, mas não nos moldes tradicionais. Vamos travar uma última batalha decisiva, apenas com um punhado dos melhores homens de cada lado. Quem perder, abdica e cede o seu reino ao Rei vencedor.

Muitas vozes se levantaram. Umas a favor, outras contra. Porquê arriscar o futuro do reino na valentia de um punhado de homens? Quem garantia que o adversário se comportava lealmente? Quantos homens?

Chamaram os emissários estrangeiros. E propuseram-lhes as condições. Haveria uma batalha, travada na fronteira, entre três dúzias de guerreiros de cada lado. Mas, ao invés de ter todos os homens a combater que nem uns tolos, a luta seria travada sem derramamento de sangue, um golpe de cada vez.

Os emissários partiram com esta resposta tão estranha ao ultimato. O Rei estrangeiro, confiante na valentia dos seus guerreiros, aceitou que se acertassem regras para esta batalha esquisita.

No dia combinado, os dois exércitos juntaram-se na fronteira. Ambos os soberanos escutaram as regras propostas pelo ancião.

«Ao longo da fronteira, cada exército estabelecerá duas dúzias de postos de observação. Uma dúzia na vanguarda e outra na retaguarda. No início da batalha, distribuir-se-ão três dúzias de guerreiros em patrulhas de alguns homens pelos postos que se entender. Os movimentos das tropas serão efectuados à vez, para permitir aos estrategas definir o curso da batalha e evitar que os ânimos mais exaltados provoquem um derramar de sangue desnecessário. Não vencerá apenas o mais forte, vencerá o povo mais inteligente.»

Esta frase deixou ambos os monarcas com um sorriso nos lábios e a vontade de provar que eram mais espertos que o outro.

«Os generais terão de fazer as suas tropas percorrer os postos de vigia, libertando todos os homens de um determinado posto e distribuíndo-os, um por cada posto, da esquerda para a direita quando na retaguarda, e da direita para a esquerda, quando na vanguarda.

Sempre que o último homem desse grupo for colocado num posto já ocupado, todos esses homens continuarão a ser distribuídos pelos postos seguintes, até que o último fique sozinho num posto. Os guerreiros isolados deverão esperar por reforços no posto onde se encontrarem. Nessa altura, o adversário poderá movimentar as suas tropas da mesma forma.

Os soldados adversário encontrados pelo último soldado da patrulha serão capturados, bem como os da sua retaguarda. Não serão maltratados nem feridos e passarão a servir o exército adversário, com lealdade. Já vi demasiada morte na minha vida e estes jovens ainda têm muito para viver. Continuarão a patrulha que os capturou. A única excepção a esta regra são os guerreiros que não têm o posto de retaguarda guarnecido. Não serão atacados cobardemente. Ficarão no seu posto até que lhes sejam dadas ordens de marcha.

O vencedor será aquele que conseguir capturar todas as forças do adversário.»

Ambos os reis ficaram espantados com este plano. As regras eram simples e a promessa de poupar os seus melhores guerreiros agradava a ambos. Mesmo se as coisas não se decidissem por esta via, podiam sempre recorrer a guerras mais convencionais. Resolveram aceitar.

Os guerreiros foram distribuídos pelas suas patrulhas e a batalha começou.

A princípio, todos levavam as suas armas e os seus escudos. As pinturas de guerra e os gritos amedrontavam os adversários e cada um prometia tormentos terríveis aos restantes.

Mas a impetuosidade esta batalha não era decidida pelos novos. Esses só davam o corpo. Seguia o ritmo ditado pelos mais-velhos, com muitas pausas para decidir a estratégia a tomar.

Os primeiros adversários começaram a ser capturados por ambos os lados. Se a princípio houve alguma violência, mas, com o tempo, as regras começaram a ser interiorizadas por todos. A troca de lados passou a ser encarada com normalidade. Os guerreiros capturados comiam, conversavam e dormiam com os captores. No dia seguinte a situação podia inverter-se.

Como as armas nunca eram usadas, as patrulhas passaram a cumprir as suas missões de mãos vazias. Uma faca e um pedaço de madeira permitiam ocupar as horas vagas, esculpindo qualquer coisa.

Como a batalha começava a dar sinais de demorar, ambas as aldeias se mudaram para mais perto da fronteira. As mulheres dos guerreiros de um e outro lado começaram a cruzar as linhas, procurando os respectivos maridos. A guerra continuava, mas agora assemelhava-se a um passeio. Antigos adversários conversavam agora, ocupando o tempo. Falavam da sua terra e da sua família. Cada um enumerava as maravilhas do seu reino e despediam-se: «Até à próxima!»

A dada altura, cada exército foi composto por mais adversários do que soldados seus, mas as regras diziam que tinham de servir lealmente o rei a que estavam afectos. E foi isso que fizeram.

A grande aldeia que surgiu na fronteira também já não pertencia a ninguém. Os habitantes de cada reino construíam a casa onde melhor lhes convinha, sem se importar se o vizinho era inimigo ou não. Um seu primo, filho ou irmão estava agora no exército do outro. E os filhos que cresciam neste meio brincavam uns com os outros.

O tempo foi passando e a batalha continuava indecisa. Muitas vezes esteve prestes a terminar, mas uma decisão inspirada dos estrategas invertia a situação.

O ancião morreu. A guerra continuou. Ambos os reis morreram. A guerra continuou. Os guerreiros cansados de tanto andar foram substituídos por outros mais novos. A guerra continuou. A aldeia comum cresceu e as antigas capitais dos reinos desapareceram.

Um dia alguém correu pelas ruas, gritando «A guerra acabou! A guerra acabou!» «Quem ganhou?», perguntavam as pessoas. «Nós! Fomos nós!»

Todos se juntaram à festa. A guerra que existia desde sempre, por razões já esquecidas, tinha terminado sem mortos ou feridos, mas já ninguém sabia de que lado estava.


A batalha

A memória do ancião perdeu-se, mas a sua sabedoria ainda perdura. De vez em quando temos a sorte de ver recriações desta famosa batalha.

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

9 respostas a “Lenda da Kiela”

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  1. Gostaria de saber onde comprar o jogo, kiela, se possível me manda um e-mail… Obrigada!

  2. 24 buracos no chão e algumas pedrinhas são o suficiente para jogar…

  3. sobre a Kiela para a Suelem….amiga um site sobre o jogo e um email para a compra dele…vai lá: sede@kiela-game.com

    o site: http://www.kiela-game.com

    é isso…abraços

    Marcão

  4. por favor, eu adorei a lenda….
    ganhei esse jogo, mas nao veio o manual de instruçao, portanto nao sei como jogá-lo, o que me entristece.
    voce conhece algum site onde eu possa acessar essa informaçao?

  5. anhei o livro sobre o jogo do Kiela e gostaria de obter o programa para jogar e transmitir a outras pessoas. Esse livro foi um presente que ganhei de um amigo brasileiro quando trabalhava em Angola.

  6. Terá de contactar o autor do jogo directamente. Experimente as ligações acima.

  7. Muito interessante esse jogo e ganhei um livro quando ainda trabalhava em Angola em 2010/2011. Porém gostaria de obter um programa para ficar jogando e ensinando as crianças que se interessasem aqui na Bahia-Brasil.

  8. Tal como indiquei anteriormente, terá de contactar o autor do livro e programa. Não sei se os endereços que indiquei acima ainda funcionam, mas são a única informação de que disponho.

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