Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

07 2008

“Será que uma chega?”

Foi com estas palavras do R. que se iniciou mais uma aventura gastronómica deste primeiro andar das Ingombotas.

“Não será melhor levar duas?” Acrescentou, enquanto segurava numa embalagem com meio quilo de carne congelada. “É bife de vaca!”

“Não, deixa estar. Seiscentos gramas chegam bem para três pessoas. Não te esqueças do acompanhamento.”

Desde esta fatídica Quinta-feira no Jumbo, que a carne acabou por ficar no congelador à espera de destino.

Esta noite fui ver o que havia no frigorífico para cozinhar. Para além dos croquetes, rissóis e pastéis de bacalhau congelados dos dias de menos imaginação, havia ainda filetes de pescada e o tal pedaço de “Bife de Vaca” congelado. A pescada foi posta de parte. Tinha sido o nosso almoço e jantar da véspera. Teria de se fazer ou uns bifes, ou um arrozinho de carne.

Limpei o gelo do pacote e li o rótulo. “Baço de Vaca”. Mas que raio? Quem é que se lembra de comprar baço? Não tinha vindo bife? O R. escolheu bife… pelo menos disse que era bife.

O pedaço de carne em questão custava apenas 76 Kz, mas a esquizofrenia dos preços angolanos faz-nos acreditar em tudo e perder a noção da realidade. Não há sítio nenhum no mundo onde se venda bife de vaca tão barato. Aliás, julgo até que a carne para animais era mais cara.

E agora, como se cozinha isto? Descongela-se e logo se verá. Um refogado é capaz de ajudar a disfarçar um eventual travo característico.

Entretanto informei as restantes vítimas do que se passava e do que os esperava. Agarraram-se aos telefones e falaram com as mães. Eram unânimes, aquilo era intragável, incomestível e imprestável. As expectativas eram baixas, portanto.


A população preparou-se para o pior

A textura da carne e a quantidade de sangue fizeram-me acreditar que talvez se conseguisse uma cabidela medíocre ou uma surra-burra sofrível. O refogado lá se encaminhava, mas a carne… tinha um aspecto cada vez menos convidativo, à medida que a ia cortando, limpando e atirando para o tacho.

Fui proibido de juntar arroz à mistela que ganhava aroma. Teria de se cozer esparguete, só para o caso de o baço se revelar mesmo incomestível. Vinho branco espanhol, uma cenoura pequenina e tomate pelado acabaram por ser sacrificados ao deus do Baço, na esperança de um milagre.

Já na mesa, serviram-se os pratos. O R. provou e cuspiu a carne. A P. provou e disse que não conseguia engolir aquilo. Eu provei e até nem achei mau. Bem próximo da surra-burra sofrível antecipada. Sabia e tinha a textura de fígado. O tempero até estava aceitável. Recebi a queixa do costume: Pouco sal.

Acabei por repetir enquanto os dois companheiros de prato se entregavam aos prazeres do esparguete no molho.

Rematámos a refeição com pêssego em calda. Nem tudo tinha de ser mau…

Da primeira vez que cozinhei cá em casa preparei o puré de mandioca com frango, hoje faço baço no tacho. Qualquer dia, com medo, proíbem-me de entrar na cozinha.

Enquanto escrevia mais este episódio das nossas aventuras angolanas, o homem-do-pijama-de-uma-risca-só lavava a loiça e não me deu tempo de fotografar o resultado. Por isso sou obrigado a improvisar com uma coisa que nunca imaginei existir: um todo-terreno funerário.


Uma carreta funerária para as ruas de Luanda

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

6 respostas a ““Será que uma chega?””

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. Já me doi a barriga, e não sei se é de rir ou do único pedaço de carne que engoli. 😀

  2. Olá Afonso,

    Tenho lido as tuas crónicas com muito interesse e muitos risos. Cresci e vivi em Angola. Cresci na Lunda, estudei no Quito e passei férias em Luanda. Saí de Angola em 1975. A minha filha mais velha (que ainda nasceu no Huambo)a partir de Setembro e durante 3 anos vai estar em Luanda por alguns períodos todos os meses. O teu blog tem sido de uma grande ajuda para ela se inteirar do que a espera 🙂 Foi o marido dela que me passou o endereço do blog. Creio que a tua irmã e o meu genro são colegas e amigos.

    Bom, estou a escrever também por ver que vocês têm tido alguma dificuldade com a comida, principalmente com alguns ingredientes angolanos, a mandioca por exemplo :-). Por isso talvez eu possa tornar menos penosa a vossa tarefa passando-vos algumas receitas!
    A melhor maneira de comer a mandioca é, ou cozida ou frita (aipim como lhe chamam os brasileiros) acompanha carne ( não baço, nhac!) ou linguiça frita ou simplesmente como aperitivo. Puré, não consigo imaginar….LOLOL
    Com a farinha sim, pode-se fazer funge que acompanha qualquer prato que tenha bastante molho, moamba (galinha), peixe (calulu)
    Aqui vai a receita da mandioca frita:

    AIPIM FRITO

    Ingredientes:
    1 kg de aimpim (mandioca ou macaxeira)
    2 1/2 xícaras de óleo
    Sal a gosto.

    Modo de preparo:
    Descasque o aipim, corte ao meio, retire a fibra central, corte em pedaços, coloque em uma panela, cubra com água, leve ao fogo alto e cozinhe até os pedaços ficarem macios, mas sem se desfazerem, tire do fogo e escorra bem.
    Coloque óleo em uma frigideira, leve ao fogo alto, aqueça bem, junte o aipim aos poucos e frite até dourar.
    Retire com uma escumadeira, deixe escorrer sobre papel absorvente, coloque em um prato de servir, polvilhe sal a gosto e leve bem quente à mesa.
    Rendimento: 4 porções

    Divirtam-se!
    ana

  3. Só um espeleólogo faminto comeria tal repasto, barrado com a mais pura das argilas.
    Um abraço

  4. Que ricas compras baço em vez de bife de vaca, realmente o preço era um luxo.
    Costuma-se dizer que os grandes cozinheiros são aqueles que conseguem improvisar com o que têm, mas baço…

  5. Estás safo Afonso …da próxima vez já tens a garantia de que te admitem na cozinha…pelo menos já tens a receita de mandioca frita, vou experimentar também! Entretanto tou solidária contigo acerca do pouco sal, também me costuma acontecer além do picante a valer que isso também conheces…vai uma pessoa tão bem intencionada para a cozinha!….

  6. Grande Afonso, só os tugas para inventar comida assim.
    E lá estava o refugado, a base de 90% dos nossos pratos 😀

    um abraço

Deixe uma resposta

Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.

« - »