Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

04 2009

Os outros sotaques

Depois de uns meses em Angola, passei a estar mais atento aos pequenos detalhes que distinguem os vários povos. Gosto de apreciar os sotaques de cada região e os pormenores que denunciam a origem das pessoas. Ando de olhos mais abertos, procurando fixar na memória toda a novidade que me rodeia.

No regresso a Portugal, sou incapaz de desligar este mecanismo e continuo a olhar para tudo com os mesmos olhos sôfregos. Mirando todas as coisas como se fosse a última vez que as verei. Arrependo-me mil vezes de não ter levado a máquina fotográfica, essa fiel companheira, para captar aquele detalhe ou enquadramento. A angústia passa depressa porque sei que o momento não foi perdido. Apreciei-o mais do que se o tivesse fotografado.

Esta atenção mantém-se mesmo na observação das pessoas. Agora parece-me estranho escutar africanos sem o sotaque angolano. Lembro-me depois que são a terceira geração. Os seus avós emigraram para Portugal há três décadas e agora falam com o sotaque universal emprestado pela televisão. São mais portugueses que eu, que moro em África. O mesmo acontece com os emigrantes chineses que agora têm filhos na escola. Não há ll trocados com rr e tempos verbais esquisitos.

O hábito adquirido de tentar filtrar a primeira camada de informação levou-me a esmiuçar um pouco mais a análise aos sotaques. Se esquecermos a cor da pele ou o formato dos olhos, todos falam de maneira igual. Mas esta é apenas a primeira camada. A que distrai. É como chegar a uma terra longínqua e todos os rostos parecerem iguais. É preciso observar outras coisas. Passei a observar os gestos.

Descobri que os gestos também têm sotaque. As garotas angolanas com que me cruzei na rua falavam não só com a voz. As suas mãos repetiam gestos aprendidos com as suas mães, iguais aos que vi em Luanda, mas diferentes dos que aprendi com a minha. A linguagem corporal usada tinha o sotaque angolano. Sorri para dentro. Descobri uma coisa nova.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

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