Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

04 2009

Divagações ao final da tarde

O final do dia chegou com uma luz especial. Nuvens pastel, variando entre o rosa e o laranja, faziam a luz inundar o mundo, afogando as sombras e emprestando à cidade uma iluminação digna de um filme.

Esta atmosfera mágica prenuncia uma mudança no tempo. Chuva ou trovoada, talvez. O calor abafado ao longo da tarde reforça o sentimento. Não sou o único a achá-lo. No centro da sala, quatro moscas voaram todo o dia em trajectórias estranhas, como que querendo escrever no ar uma epopeia de insectos. São as mesmas que me prendiam a atenção em pequeno. Os seus arranques e mudanças de direcção aparentemente aleatórios e intermináveis são fascinantes, do ponto de vista do entretenimento infantil e da curiosidade científica, claro.

Em Angola, habituei-me a ver as coisas como estrangeiro, a observar sem intervir. Hoje dei por mim a fazer o mesmo na terra onde cresci. A perda de memória colectiva a que assisto em Luanda, com a demolição dos edifícios que dão identidade à cidade fez-me perceber que também na minha terra isso acontece. Circulei nas ruas que conheço tão bem, arregalando os olhos e escutando conversas que sei serem familiares. Memorizei o aspecto das casas que enchem as minhas memórias, na esperança de que não tenha de as recordar apenas e que as possa ver na próxima visita.

Algumas novidades aqui e ali. Lojas fechadas. Muitas casas à venda. Árvores podadas. Um prédio incaracterístico mereceu uma placa aludindo à morada de um pintor famoso. Queluz está a ganhar memória!

Um pouco mais à frente, uma avó passeava com a neta. A neta dizia que não ia chover a avó insistia que sim. Afinal de contas, o calor que estava não enganava ninguém. Sorri para dentro e olhei para o céu. As nuvens estavam mais rosadas. Olhei para o chão. As sombras continuavam desaparecidas.

No jardim, sobre cada arbusto, nuvens de pequenos mosquitos tentavam dar sentido à sua breve vida numa orgia alada, desenhando espirais que se contorciam e faziam os corredores fechar a boca e esbracejar quando por lá passavam.

Olhei para o céu uma última vez, antes de o dia se transformar em noite, e tive a certeza de que não podia deixar escapar o momento. Estuguei o passo para chegar mais depressa a casa. Tinha um artigo para escrever.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “Divagações ao final da tarde”

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  1. … e muito bem escrito, por sinal! A “dança” dos mosquitos foi a “cereja no cimo bolo”.

    Boas férias.

    Maria

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