Quatrocentos, mais ou menos
Afonso Loureiro
Ao longo de mais de um ano, o Aerograma tem crescido em direcções inesperadas. Começou timidamente, apenas para contar e aprofundar as experiências que um novo continente diferente proporciona. Servia para manter os meus ao corrente de tudo aquilo que não conseguia dizer pelo telefone, quer fosse por me faltarem as palavras quer por ainda estar a tentar digerir tudo quanto tinha visto, ouvido e sentido.
Pouco a pouco, o Aerograma sentiu a necessidade de se tornar diário. Eu não tive voto na matéria. Apenas contribuo com uns toques nas teclas para que as palavras ganhem forma. Impus-lhe algumas regras, no entanto. Não toleraria repetições injustificadas de temas ou de histórias. Só permitiria textos originais. Não me tornaria seu escravo.
Mais de trezentos artigos depois, notei mudanças em mim e no Aerograma. Apercebi-me das muitas muletas que usava nos textos e, paulatinamente, tenho-me obrigado a abandoná-las. Ainda faltam umas quantas, mas noto melhorias. O Aerograma também deixou de ser um relato diário do que me rodeava. Os artigos passaram a ser um pouco mais imprecisos no tempo, porque, na verdade, não me interessa muito saber em que dia vivi um determinado episódio. Interessa-me apenas saber que me marcou.
A meio deste artigo apercebi-me de que, mais uma vez, o Aerograma se tinha apoderado dele. Parece um artigo a comemorar mais um centenário, mas queria mesmo ter falado de outra coisa.
Voltemos ao tema.
Uma das regras que estabeleci foi a de não me tornar escravo do Aerograma. Sirvo-lhe de intérprete e dou-lhe forma porque quero e não o contrário. No entanto, as coisas nunca são assim tão lineares. Habituei-me a ter sempre alguns artigos de reserva, programados para os dias seguintes, para não sofrer a pressão de ter de escrever um. Pode haver dias em que as coisas fluem melhor e consiga preparar meia-dúzia deles e de deixar outros tantos alinhavados. Outros nunca passam de uma breve nota no caderninho que se acaba por perder porque já sou incapaz de perceber a minha elegante caligrafia esquizofrénica.
Mas esta relação tão próxima com algo que já tem vida própria provocou mudanças no meu ser. Habituei-me a escrever. Acostumei-me a esta relação de intimidade longínqua com pessoas que não conheço, apenas porque tenho um intérprete das minhas experiências. Escrevi sobre muitas coisas diferentes. Escrevi mais do que alguma vez sonhei e sinto que ainda há muito por dizer.
Percebi que tinha violado a minha regra quando fui de férias e deixei de poder escrever. Viagens, burocracias e cansaço contribuíram para este desleixo. Os artigos que tinha de reserva foram sendo publicados, ao ritmo de um por dia, como sempre, até que se esgotaram.
A escrita é uma rotina. E a longa pausa quebrou essa rotina. Dei por mim preocupado porque tinha mesmo de escrever ou então o Aerograma era interrompido. Não adviria nenhum grande mal ao mundo, mas abria um precedente. Deixaria de ser diário por incúria minha.
Escrevi umas coisas assim-assim, pouco inspiradas, porque a quebra da rotina foi também acompanhada por um afastamento das experiências que movem o Aerograma. Fui escravizado por algo que devia controlar.
Algures na Áustria
Foram precisos alguns dias até que conseguisse afinar de novo os sentidos para procurar os detalhes no meio do ruído. Ao fim de uma semana, voltei a rir-me das crianças a correr na lama atrás de um cão. Tornei a fazer notas incompreensíveis no caderninho, sabendo de antemão que poderão nunca ser usadas.
Senti-me liberto. Percebi que a escrita sobrevive de uma certa rotina e disciplina. As regras não precisam ser rígidas, mas têm de existir. Voltei a escrever quando me apetece. Um, dois ou mais artigos de cada vez. Hei-de voltar a ter uma reserva confortável, mas não me vou preocupar muito com isso. Fui alforriado e não me apetece voltar a ser escravo.
E só para lhe mostrar quem manda, vou publicar este texto apenas daqui a uns dois meses, por altura do quadrigentésimo artigo!
Tchim-tchim!
É que acontece algo de interessante. Ao fim de um tempo não somos nós que chamamos a escrita, ela é que chama por nós.
Boa sorte:)
Bravo! 😀