Um vintém para o barqueiro
Afonso Loureiro
Lá no escritório temos um jardineiro. Quer dizer, jardineiro não será bem, mas como vai varrendo o pátio e trata da relva, é assim que está classificado no contrato.
Veio da Gabela, onde diz que faz muito frio no Inverno, para Luanda, já não sabe bem porquê. Aqui, pelo menos, pode-se dormir fora, garante. Antes de para cá vir trabalhar, vivia de expedientes, guardando vagas de estacionamento e lavando carros ou transportando coisas.
Tal como muitos outros angolanos, quase que paga para trabalhar. Todos os dias tem de apanhar três táxis para vir e mais três para voltar. Cada corrida custa 100 Kz. São 600 Kz por dia só em transportes. Ao fim da semana, gastou 3’000 Kz só para vir trabalhar. E no fim do mês, já se foram 12’000 Kz. Com um salário acima da média para a função, recebe 16’000 Kz. Não sobra muito. Quando fiz estas contas, lembrei-me de Lopes Graça:
«Fui um ano à vindima,
pagaram-me a trinta réis;
dei um vintém ao barqueiro,
ai, fui pra casa com dez réis.
Dei um vintém ao barqueiro,
ai, fui pra casa com dez réis.»
Perguntámos-lhe quanto custaria uma bicicleta para vir para o trabalho, para saber se seria incomportável. 8’000 Kz, metade do salário. Aprofundando a questão, descobrimos que não compensava comprar uma. A bicicleta cansa muito, deve ser perigoso por causa dos carros e, quando chove, chega-se todo molhado. Mas uma mota, sorriu, isso é que era!
Isso lembra-me (mais o título que a descrição) Caronte, o barqueiro, que na mitologia grega estava encarregado de fa zer a travessia dos mortos pelo rio Estige (ou Styx – rio da imortalidade) mas só tranportava almas cujos corpos tivessem sido enterrados com um óbelo (pequena moeda grega) debaixo da língua para cobrar a travessia. Parece que há não muito tempo em algumas aldeias de Portugal ainda havia o costume de pôr uma moeda no caixão para acompanhar o morto. E não sei mesmo se em zonas de Angola, pois há aspectos interculturais quase universais que se transmitem não sei como.
De repente, a propósito de Caronte, parece que o jardineiro virou Orfeu. A diferença é que este pagou ao barqueiro para ir ao Mundo Inferior resgatar a sua amada Eurídice, enquanto que o jardineiro paga ao candongueiro para poder ir trabalhar.