O grito da p’xeira-ê!
Afonso Loureiro
O colorido de Luanda não é só devido aos remendos nas fachadas e pinturas avulsas para receber um qualquer dignitário, nem só pelas diferentes tonalidades que o pó, a chuva e o lixo vão emprestando às ruas. São as pessoas que cá moram que criam esta atmosfera diferente.
As esquinas onde se aglomeram os engraxadores a disputar fregueses, sapatos e bainhas com as suas garrafas de água ludra e escovas de três cerdas fazem, certamente, parte da cidade, tal como quem zunga trastes e inutilidades por entre os carros.
Mas o colorido não é só feito de imagens. Há também o colorido sonoro. E nisso, Luanda é um arco-íris de sons e ruídos. São as ambulâncias em marcha de urgência, nem que seja a altas horas da madrugada, com as ruas desertas. São as buzinadelas furiosas porque alguém parou na passadeira, sabendo perfeitamente que o condutor atrás queria parar vinte metros à frente. São os escapes livres das motas e as aceleradelas nervosas dos seus condutores, que fazem concorrência aos batedores dos Volvo de vidros fumados a abrir caminho no meio do engarrafamento e são os gritos, os muitos gritos de gente que chama, conversa ou discute.
Pelo meio disto tudo conseguimos reconhecer sempre o chamamento das peixeiras que, de alguidar à cabeça, conseguem projectar o seu pregão mais alto que os demais.
Demora um pouco até que consigamos decifrar o peixe que vendem, mas depois de se perceber onde começam e acabam as palavras do pregão, torna-se fácil entender «Kemképêx’galo-ê», «Kemképêx’pada-ê» ou «Kemkékarapau-ê»…
Olá Afonso,
Parabéns pelo site!
Descobri-o apenas há uns dias num giro por blogs de Angola e porque me identifiquei muito com o que escreves passei a ser visita assídua.
Imagino que não seja nada fácil manter esse ritmo de um post por dia, mas para nós que te lemos é muito bom ter histórias novas de Angola diariamente. Por isso, força para continuares!
Abraço
Afonso:
Cada vez me divirto mais com os seus pregões emprestados das zungueiras de Angola! (também me divirto muito com as interpretações “exóticas” que alguns dos seus posts suscitam, mas isso é outro assunto)
Veja se ouve por aí a peixeira a vender ” Caxuxowéeeee ” !
Nem imagina as coisas de que vimos a ter saudades quando deixamos Angola!
Felicidades e continue!
Susana
É, sem dúvida, dos sons mais enraizados na minha memória de infância. Quase um cartão de identidade da cidade 😉 Ora aí está.. mais uma descrição perfeita!
Abraço*
Nem sei como me posso ter esquecido do pregão Caxuxowéeee. Ao fim-de-semana é quase sagrado.
Esses gritos que ecoam das peixeiras
Avivam-me saudades de Luanda,
Recordam-me os pregões das quintandeiras
Lembram-me os maximbombos na Mutamba
Sinto-me na marginal sob as palmeiras
Passeando de Alvalade até à Samba,
Da Sagrada Família ouço as sineiras
Do cine Miramar observo Luanda
A Negage por fazendas cafezeiras
Rumei, a Ambriz com função quejanda,
E a Maquela do Zombo nas fronteiras
Depois, cheguei à Terra Lobitanga
Envolvi-me com mesclas tintureiras,
Transmutei-me com a água dessa banda.
Com um abraço no 32º aniversário do meu regresso
Quando vivia em Luanda muitas vezes acordava com os gritos das peixeiras e isso irritava-me. Agora até saudades das peiexeiras tenho! 😉
Só um “a parte”, desde quando é que existem passadeiras em Luanda?
E gostei do poema acima escrito.
Abraço e bom fim de semana!
É verdade, agora até passadeiras pintadas temos. Os agradecimentos devem ser enviados para o Vaticano…
Tenho saudade da cantinela das peixeiras. Era minha música preferida…