Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

25  06 2009

Normalidade

Há dias, dei por mim numa rua esburacada, rodeado de casas construídas segundo a inspiração e materiais disponíveis na altura, contornando charcos de lama negra feita de esgotos e óleo de motor. Apercebi-me de que nada daquilo me chocava. Sempre tinha sido assim e não via razão para que mudasse. Habituei-me a Luanda e, por instantes, achei que o resto do mundo devia ser igual.

Carcaça de automóvel sobre montes de entulho no Bairro Rocha Pinto
No Rocha Pinto

Algumas semanas depois, servi de cicerone a dois espanhóis numa voltinha rápida pela cidade: Maianga – Mutamba – Marginal – Mausoléu – Samba – Prenda. Percorremos a «rota do Papa», arranjada e pintada e outras avenidas, em estado natural. Passei pelas ruas de todos os dias, mas desta vez acompanhado por dois pares de olhos que ainda não eram capazes de filtrar o ruído, o lixo e a degradação. Interjeições de Esto es muy feo! e Tanta basura! foram acompanhando esta viagem de regresso às minhas memórias dos primeiros dias na cidade.

Zungueira de Pão com o filho às costas
Para alimentar o filho

Tal como eu fiz à chegada, repararam nas incontáveis crianças a correr só de cuecas, nos milhares de homens encostados às paredes e nas outras tantas mulheres de alguidar à cabeça e filho às costas.

Estava a precisar de abrir os olhos, porque se é verdade que nos habituamos a tudo, também é preciso não exagerar.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

6 respostas a “Normalidade”

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  1. Pois é. Muitas vezes as pessoas habituam-se às coisas que estão mal mas como são o dia-a-dia nem as notam e não é por isso que passam a estar bem.

  2. Já há muito tempo que noto isso. Questiono-me imensas vezes como consegues tu comentar certas coisas da forma como fazes, indiferente aos amontoados de lixo, às crianças descalças, à degradação geral…
    Para além disso, sempre que falo com alguem que vem daí, dizem-me invariavelmente: “Não, aquilo já evoluiu muito, está muito melhor agora!”
    Pois eu pergunto: “Em quê?”

  3. Algo muda e não conseguimos apontar exactamente o quê. Ou, se calhar, é a esperança que nos toma conta dos olhos.

  4. Penso que o grande problema é esse – passar-se a olhar para tudo como se fosse absolutamente normal e não valesse o esforço para a mudança. Por outro lado, normalmente quem argumenta que houve grandes evoluções, com certeza não tem muito presente o factor “humano” na avaliação do desenvolvimento de um país. Continua a haver conformismo, miséria, pouco ou nada feito no que diz respeito a saúde, saneamento, habitação, requisitos mínimos de qualidade de vida para a população em geral.. mas como até se ergueram umas torrezinhas todas jeitosas aqui e ali e se asfaltaram umas quantas estradas.. é o suficiente para argumentar que está tudo bem melhor.

  5. Soube há poucas semanas que para cá vinha e a minha “preparação” passou pelo Aerograma, blog que já sigo há algum tempo. (obrigada!)

    Mas confirmo o que disse antes de vir (aterrei cá hoje com o meu marido e filho de 3 anos): independentemente do quanto ler e de quantas fotos vir, não acho que alguém venha preparado para Luanda. A primeira impressão está a ser bastante má, espero que melhore.

    (este post veio a calhar, já não me sinto tão mal por ter ficado – estar – tão chocada e ainda pouco vi)

  6. Quando se diz que estão melhores não quer dizer que estejam boas ou que as condições actuais sejam as ideais ou sequer as satisfatórias para a maior parte das pessoas. Não. Estão simplesmente “melhores do que”. Estive pela primeira vez em Luanda em 2000, de férias (Sim! De férias mesmo!) e as “estradas”…a actual estrada da Samba (que tanta dor de cabeça nos dá actualmente) não existia. Existia uma picada em seu lugar. Não se via zungas pelas ruas e consequentemente não havia fruta e legumes frescos. Não se cultivava porque o país ainda estava em guerra e os campos minados. Não se ia ao Cacuaco comprar peixe fresco ou lagostas a Cabo Ledo. Não se saia à noite para dançar no ChillOut ou Palos. Não iamos passear a Benguela ou Huambo nos fins de semana compridos, não iamos para as Palmeirinhas ou Barra do Kuanza fazer praia…não era simplesmente seguro que nos afastassemos mais que 40/50 kms de Luanda. A electricidade agora falha de vez em quando, na altura tinhamos de vez em quando electricidade. Etc, etc, etc. Portanto, caros amigos, já houve mais lixo, já foi mais degradado, mais miséria… e ainda bem que as zungas, com os filhos nas costas, podem hoje zungar e ganhar algum dinheiro…já houve tempo em que isso não era possivel. Não é conformismo nem achar que “isto agora é que está bom”, é perceber que houveram melhorias e que vão continuar a haver. Fico com a impressão de que a maior parte das pessoas se esqueceu de como era Portugal há uns 30 anos, do lixo que havia nas ruas. Que se esquecem de como é o sistema de saúde Português e dos meses ou anos que tem que se esperar para ter uma consulta de especialidade, das reformas miseráveis que as pessoas ganham depois de uma vida de trabalho e que tenho dúvidas dê para viver (sobrevivem…)…entre outras coisas. Como se costuma dizer, o povo tem memória curta e é sempre mais facil apontar o dedo aos outros e não perceber que se tem três dedos apontados na nossa direcção…
    Façam um exercicio e vejam as diferenças entre o sistema de saúde e segurança social Português e o Norueguês, por exemplo. Giro não é?! Mas afinal até são dois paises europeus…
    A realidade europeia e a africana, e no caso especifico a realidade angolana, não são comparáveis. Se a sociedade angolana fosse perfeitamente organizada e tudo funcionasse “que nem ginjas”…não seriam precisos os expatriados nem se ganharia o que se ganha aqui. Puro e duro.
    Não sou, de todo, indiferente ao lixo, á miséria, á falta de condições de vida ditas “normais” da maior parte da população mas…”malembe”, a tendência é de melhoria. In the mean time resta-nos olhar para as outras coisas, as coisas boas, que por aqui existem e todos os dias perceber e valorizar o que muitas vezes na vida se toma como certo…
    Se tudo o resto falhar Angola ensina-nos isso – a valorizar.

    P.S. Uma coisa piorou bastante!!! O trânsito em Luanda =D

    P.S.S Afonso, só à chegada a Luanda, depois de um dia em Cabo Ledo, “descobri” o cache que lá deixaste …na próxima vou deixar um recado 😉

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