Mata-bichar
Afonso Loureiro
A mudança de hemisfério trouxe alterações não só de morada, mas também de hábitos e costumes.
Houve algumas alterações na vida do dia-a-dia. Andar na rua e ir espreitando, discretamente, por cima do ombro passou a ser normal. Trancar as portas do carro assim que se entra também é a regra e, para quem tem, usar o relógio no pulso direito – o mais afastado da janela do carro.
O regateio, uma arte quase esquecida nas terras lusas aqui é a regra para tudo. E só depois de se ter pago algumas vezes o preço de branco é que se começa a saber o preço justo das coisas. Benditas aulas de regateio etíope que tive com o Prof. Abdissa Gamada, um Oromo radicado em Portugal.
Há coisas que não mudam, como a necessidade de comer e dormir.
Dormir tem sido complicado. Não houve mudanças de fuso horário, mas os novos barulhos que Luanda me traz, bem como uns horários um pouco estranhos, têm-se feito notar nas olheiras que às vezes ostento ou no ar de zombie com que nos arrastamos logo pela manhã.
Mas é nos pequenos pormenores que se notam mais diferenças. Às vezes acordo a meio da noite e julgo que vou cair da cama, mas ainda me falta mais de meia cama até tombar. Outras vezes julgo estar de um lado e estou no outro, ou acordo e acho estranho ter a janela naquela parede. Sinto falta da minha cama, em que me podia chegar à parede e ficar lá encostado. Nesta também não posso pôr os pés de fora, por causa da rede mosquiteira. É estranho acordar e ter uma imagem mental do que me rodeia tão desfasada da realidade. São uns segundos de desorientação agravados pela vontade de ficar a dormir…
E depois há as pequenas diferenças, que poderiam parecer inofensivas, mas têm implicações imensas.
O próprio pequeno-almoço, que antes era uma taça de Nestum de chocolate, agora passou ser pão com manteiga, o tal leite em pó hipnótico e café instantâneo. O pior é até mudou de nome, para algo tenebroso, mas que se adequa a Angola – Mata-bicho!
Não percebi o “tenebroso”.
Matabicho vem de matar-o-bicho porque quando se acorda com fome, normalmente a barriga faz aqueles barulhos incomodativos e as nossas velhas diziam “anda menino vem já matar o bicho” …
São muitas as mudanças e muitas descobertas, umas boas e outras menos boas… mas aquilo que não nos mata ajuda-nos a ficar mais fortes.
Penso que isso tudo faz parte do processo de adaptação. É mais difícil quando há mudança de fuso horário. Já estou fora do meu país há 8 anos e as vezes ainda acordo a meio da noite e não sei exactamente onde estou, é uma sensação estranha pois penso que estou lá e estou cá. Também já me aconteceu de acordar e estranhar ter a janela ou porta numa determinada parede ou a cama estar virada para tal lado… Com o tempo ameniza ou até cessa, depende de cada pessoa.