Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

22  08 2009

Olha lá, largas pêlo?

Quando entrei em Angola, tinha comigo um passaporte. Não era especialmente bonito nem nada, nem sequer era meu, porque o Estado Português só mo emprestou por uma década. Mas no fundo, até gostava dele, nem que fosse porque tinha lá a minha fotografia e os carimbos que marcaram o cruzar de muitas fronteiras… Veio substituir o outro, que tinha um número com cinco algarismos iguais, quase como se fosse uma curiosidade.

Por causa de Angola, tive de me separar dele três vezes, situação inusitada e que é capaz de violar o acordo que assinei dizendo que nunca o deixaria fora da minha vista, sob pena de ter o Estado a dizer que me estava a portar mal.

A primeira separação foi para a obtenção do primeiro visto. Durante duas semanas andou no processo da agilização lá no Consulado da República de Angola em Lisboa – atenção ao nome, se estiver mal endereçado, o processo é recusado! Devolveram-mo com o visto a ocupar uma página inteira. Na primeira carimbadela angolana, ainda no aeroporto, fui presenteado com o habitual ar desconfiado do funcionário que não confia nos próprios serviços consulares do país.

Umas semanas depois, para receber o visto com super-poderes, que me conferia o direito a respirar o ar angolano por um ano inteirinho, voltei a deixar o livrinho castanho com a ilustração dos Lusíadas fugir-me da vista. Longos dias passou ele nas masmorras da DEFA, suponho que a pão e água e alguma porrada. Regressou magrinho e combalido, com umas esfoladelas na capa. Lá dentro, mais uma página ocupada com o autocolante do visto, agora com uma fotografia e tudo.

Mais umas carimbadelas de entrada e saída, quase sempre tão sumidas que fazem um bom exercício de decifração de datas e postos fronteiriços, marcaram um ano de uso. Passou até pela mudança do sistema informático no aeroporto trouxe menos atenção ao controlo do passaporte e muito mais complicação na hora de carregar nas teclas do computador, quase sempre a morder a língua no canto da boca…

A terceira separação começou quase um mês antes de expirar o visto e tem-se prolongado para além do razoável. Desde que entrou na DEFA, que nunca mais o viram. Dois meses, daqui a nada. Em troca recebi um papelito com um ar semi-oficial, sem carimbos ou assinaturas, que será contestado pelo primeiro fiscal de estrangeiros que lhe puser as mãos em cima, alegando ser falso, feio ou fazer uma sede desgraçada

Depois de ouvir algumas histórias de passaportes que desaparecem naquela casa e são encontrados, meses depois, a servir de calços a mesas mancas, já estou por tudo. A minha teoria é a de que faltou papel na casa de banho e alguém usou o que tinha mais à mão; um pouco como a história do urso e do coelhinho que deu o título a este artigo.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Olha lá, largas pêlo?”

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  1. Olá Afonso,

    Infelizmente essa é a marca de Angola!!!

    com tudo de bom e de mau que alguém possa imaginar,por isso sê paciente e tente escutar a musica«deixa a vida me levar», de Zeca Pagodinho,pois em Angola convém seguir por essa ordem caso contrário perdemo-nos por completo. Mas na boa, é Angola à crescer. 🙂
    Já agora felicito-o pelos artigos são excelentes.
    Um abraço, Edna

  2. Como o entendo…
    Agora nestas belas paragens africanas, passo pelo mesmo processo.
    Mas estou certo de que tem calo. Bem mais que eu, se bem que nas Terras do Progresso do Kuando Kubango, as coisas ganham outras tonalidades.

    Um abraço

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