O despertador V8
Afonso Loureiro
As corridas de motas em Luanda têm um horário bem definido, que quase parece ter sido estabelecido por decreto. O aquecimento e as eliminatórias começam por volta das dez da noite e a última prova decorre um pouco antes do Sol nascer. Por volta das duas da manhã podemos assistir às provas mais importantes de todas as categorias.
O horário reduzido é fruto de limitações impostas pela própria cidade. Durante o resto do dia o trânsito está tão compacto no centro de Luanda, que as corridas se resumem a arranques de vinte metros entre os carros ou quarteirões inteiros feitos em contra-mão no passeio.
Com tanto piloto a exibir-se um período tão concentrado, não se conseguiu estabelecer um circuito isolado, pelo que a qualquer altura há pistas e provas que se cruzam sem qualquer segurança. Cá para nós, mesmo que se fechasse algumas ruas, os corredores arranjavam maneira de contornar as barreiras em vez de ir dar a volta.
A segurança em prova é crucial para a manutenção da actividade, mas os semáforos e as regras de trânsito já não valem durante o dia, quanto mais durante as noites de competição. A organização arranjou um método engenhoso para evitar acidentes nos cruzamentos de pista, obrigando todos os veículos a circular de escape aberto e dando um curso intensivo a todos os pilotos para, sempre que possível, conduzam dando aceleradelas a fundo.
Os choques entre pilotos diminuíram drasticamente, à custa do sono dos vizinhos, que, diga-se, também não tinham nada que vir morar paredes meias com as pistas mais concorridas do mundo.
As noites mais concorridas são as do fim-de-semana. A maior parte das estrelas do asfalto também trabalha ou estuda e não se pode dedicar totalmente ao desporto. Mesmo assim, há sempre alguns que se aplicam nos treinos nos dias úteis.
É claro que o despertador apenas vem confirmar que muitas noites são mal dormidas e toca exactamente quando o trânsito compacto com a ocasional buzinadela furiosa substituíu os escapes livres. Com a buzinadela ainda se consegue viver…
Para evitar quebras de produtividade do pessoal que acaba por desligar o despertador e virar-se para o lado, um departamento governamental, que ainda desconheço, envia todos os dias uma viatura oficial como despertador de última linha, percorrendo as ruas anteriormente usadas para as corridas com uma sirene estridente. Como estamos em Angola, o despertador é um imenso oito cilindros em V, pintado de azul e com vidros fumados.
Todos os dias, a cerca de quinze minutos das oito, o Volvo azul vai serpenteando entre as filas de Corollas, iáces e Rav4s assinalando uma coisa que julgávamos ser marcha de urgência. Ao fim de duas semanas a passar à mesma hora chegámos à conclusão que não era urgência nenhuma, porque a definição de urgência exclui factos previsíveis e duvidamos que haja todos os dias urgências no mesmo sítio.
O despertador oficial – hoje passou às 7:48
A viatura oficial passa sempre vazia, pelo que o senhor motorista quer é chegar ao emprego a horas e sai sempre tarde. Acha piada abusar do facto de ter uma sirene. Faz-me lembrar os polícias que foram denunciados por todos os dias passarem em marcha de urgência na ponte sobre o Tejo…
Deixe uma resposta
Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.