Momento Delicatessen
Afonso Loureiro
Certos filmes têm o condão de nos marcar para a vida, pela história, pela fotografia, pela encenação ou por uma coisa tão simples como um plano bem enquadrado.
O final de quase todos os filmes de Jacques Tati, com as suas janelas abertas para um futuro impossível que se perde numa nostalgia insuportável devem ser a perfeita tradução visual da saudade que a tantos poetas escapa.
Pequenos pormenores levam-nos de imediato ao escuro da sala de cinema, onde recordamos o cheiro do pó das cadeiras e imaginamos a cruz de malta do projector a marcar o ritmo da fita.
Um destes dias tive esta sensação na Baixa de Luanda, vi-me dentro do filme, com uma cena elaborada, cheia de planos e cortes encadeados de forma quase hipnótica, que me rodeava e fazia olhar para todas as direcções ao mesmo tempo, sem perceber muito bem como tinha sido sugado para a tela.
No cruzamento, a ambulância marcava o compasso do quarteirão, qual maestro de orquestra sinfónica. O polícia apitava acompanhando a sirene e, seguindo o mesmo ritmo, o operário martelava alguma coisa contra o tapume, que ressoava pela rua inteira. As peixeiras preenchiam os espaços mortos, anunciando carapaus e peixes-espada. Rabos pendurados à janela dos azuis-e-brancos gritavam paragens importantes nas rotas dos candongueiros, com o seu ritmo característico, que hoje parecia estar preso ao da ambulância, como o resto do trânsito e o engraxador, que batia com a escova na caixa da graxa, atraíndo clientes.
Por uns instantes apenas, toda esta cacofonia fez sentido. Parecia que tinha sido escrita para a cena. Procurei, em vão, a mulher-a-dias a bater o tapete ou o homem com os sapatos de palhaço a pintar o tecto. Nem sequer consegui distinguir as molas do colchão da amante do talhante, mas sei que estavam lá, provavelmente afogadas pela sirene da ambulância presa no trânsito.
A ilusão desfez-se tão depressa como surgiu. As câmaras foram-se embora, sem nunca ter ouvido o famoso «Corta!». Mas hoje, por uns instantes, o Delicatessen esteve em Luanda, com todos os seus canibais, chamarizes de vaca e novelinhos de lã.
Bonito era ter culminado com aquele orgasmo 🙂