Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

26  11 2009

As armas do dinheiro

Num país que atravessou quase três décadas de guerra civil, é natural que haja armas um pouco por todo o lado. Fazem parte da vida, tal como as enxadas e os livros deveriam fazer no tempo de paz.

Com o fim da guerra, tornou-se necessário recolher os milhões de armas de guerra espalhados pelas dezoito províncias. O desarmamento dos civis e a criminalização da posse de armas de guerra é um dos passos para a estabilidade social do país. As campanhas de recolha e destruição continuam e têm dado frutos.

Até há bem pouco tempo, militares, polícias e seguranças eram os únicos com permissão para usar armas automáticas ou com calibres considerados de guerra. Os milhares de seguranças espalhados pelo país eram todos antigos militares, cujas qualificações profissionais consistiam em saber usar uma arma ou, pelo menos, apertar o gatilho com convicção. A falta de preparação destes últimos veio fazer com que apenas os seguranças afectos ao transporte de valores, mais treinados, possam agora exibir armas. Alguns dos restantes também as têm, apesar de as manterem guardadas algures, por vezes nos sítios mais incríveis, como já testemunhei.

Há dias, no banco, enquanto esperava a minha vez para ser atendido, chegou uma carrinha com seis guardas armados. Saltaram dos bancos corridos com almofadas coloridas e encardidas, para disfarçar a dureza das tábuas, e espalharam-se, aos pares, pelas portas do banco, enquanto esperavam a chegada da segunda carrinha, com o cofre do dinheiro. Graças à excelente invenção dos vidros espelhados, pude observar discretamente a chegada do dinheiro e, acima de tudo, o armamento dos seguranças.

Cada um trazia uma AK-47 pendurada pela bandoleira, com o cano a apontar para o chão e a mão esquerda sobre a janela de ejecção dos cartuchos. Na mão direita uns traziam um rádio, outros uma garrafa de água gelada e outro um boné preto. Ao peito usavam uns arreios com bolsas para quatro ou cinco carregadores, todas vazias. As espingardas mostravam os sinais de uma longa vida de serviço nas mazelas da coronha, nos canos enferrujados e nos plásticos polidos pelo uso. Alguns dos carregadores estavam envolvidos em fita isoladora. Apesar de tudo, algumas marcas de óleo com pó em volta do gatilho e carregador faziam adivinhar que estavam em ordem de marcha.

Um dos seguranças aproveitou a sombra dada por um arbusto num vaso para se abrigar. O vaso estava quase encostado à janela onde eu estava. Tirou a bandoleira e apoiou o cano da arma na aba do vaso, como se fosse uma bengala. Empunhava-a com a mão direita e falava com o colega encostado à ombreira da porta. Enquanto rodava a arma de um lado para o outro, reparei num pormenor muito interessante, que quase me fez rir alto. O cano da arma estava torcido. Os últimos centímetros antes da boca apontavam nitidamente para a esquerda!

Alguém deve ter usado aquela espingarda como alavanca, à falta de uma ferramenta apropriada. Custa-me pensar no que acontecerá se a tentarem disparar. Talvez acertem ao lado, talvez o atirador tenha uma surpresa, talvez as duas coisas… Ou então, o barulho das luzes disfarça.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

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