Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

28  11 2009

Entendimento entre cidadãos

É bem sabido que a satisfação profissional não passa exclusivamente pelo salário. Claro que ser mal pago não contribui para a felicidade de ninguém, por muito que goste do emprego. Os mais radicais defendem que o trabalho ou é bem pago ou é feito de graça, mal pago nunca. Depressa concluímos que os mais radicais não têm de pagar contas.

Depois da melhoria de comportamento da polícia em Luanda, no que toca a gasosas, por altura das eleições legislativas e da visita do Papa, e também à admissão de muitos novos polícias, ainda sem os vícios dos mais antigos, a crise que afectou o mundo e atingiu Angola, contrariando o discurso oficial, originou um retrocesso.

Ao que parece, os salários dos polícias foram reduzidos. Os rendimentos têm de ser complementados de outras formas, nem que para isso se tenha de denegrir a farda, corrompendo e sendo corrompido ou, usando o eufemismo oficial, «chegar a um entendimento entre os cidadãos».

Os esquemas das gasosas estão de novo na moda na berma da estrada, no aeroporto, nas repartições públicas e em todos os sítios onde se consiga vender facilidades para contornar as dificuldades de geração espontânea.

Conduzir ao fim-de-semana, especialmente para fora da capital, voltou a ser complicado, com muitos controlos demorados que acabam por quebrar o ritmo da viagem a fazer apetecer regressar.

É curioso ver os condutores ser mandados encostar, pedirem-lhes um documento qualquer e mandarem-nos esperar mais à frente uns minutos. Um pequeno período de reflexão, talvez para sortear uma dificuldade. Mais tarde, depois de muitos documentos trocados pela janela e de perguntas acerca de coletes, triângulos, macacos, chaves de rodas, pneus e data da última revisão, começa o jogo da paciência. Mesmo que não haja nada a apontar, algo se acertará, na medida da pressa do condutor.

Toda a gente está de olhos postos na grande corrupção, mas é a pequena que mais afecta a vida das pessoas. A primeira a ser combatida tem de ser esta, para que as próximas gerações cresçam com referências de integridade a cada esquina. Não se pode achar normal que se ache normal parte do rendimento habitual dos funcionários públicos provir de subornos.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

7 respostas a “Entendimento entre cidadãos”

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  1. Caro Afonso

    Há muito que não comentava por aqui. Já fui indo e voltando várias vezes e fui constatando ao vivo e a cores o que muito fui lendo do que nos vai contando, relatando e documentando. Não há como descrever o que se sente a pulsar nas veias sobre uma terra que me dizia tanto de emoções várias em épocas distintas. Primeiro um tempo de infância perfeita e depois em 1985 com todos os condicionalismos da guerra onde a insegurança, o lixo acumulado à altura de um 2º andar em vários locais da cidade onde ia sendo depositado exalando um tal cheiro que os meus pais que aí estavam recomendaram que levassemos lencinhos perfumados, porque o desembarque era efectivamente enjoativo, os mutilados, as crianças nas bermas com barrigas proeminentes, o recolher obrigatório, a falta de víveres, a ocupação de tudo o que ainda estava desabitado por milhares que chegavam do interior foram quadros duros que nunca se nos apagam da memória e ainda assim, eu confesso que na minha primeira ida este ano o choque foi mais brutal, apesar de já ir bem preparada, é um facto que Luanda é um desconcerto e mais irreconhecível do que no tempo dos morteiros em que muito estava destruído mas talvez nessa altura fosse mais fácil sonhar que melhores dias para o povo e para a cidade iriam chegar.
    Teria muito para escrever e partilhar neste seu cantinho de passagem diária obrigatória, quer quando estou cá quer quando estou aí, mas a ideia é só contar um episódio que acaba por resumir tudo o que poderia dizer.

    Numa esplanada dois amigos conversavam. Um já aí estava há meses e apresentava já o cansaço no facies e no modo como ia dando troco ao outro que acabado de chegar, mais fresco, ia tentando encontrar positividades:
    – Ah, mas isto está melhor agora! Nota-se uma evolução grande e já há muitas estradas melhoradas e já há isto e aquilo e assim e assado para abreviar porque como calcula foi focando muitos pontos que estando por aí pode imaginar. Isto a esta velocidade daqui a pouco tempo vai ser uma maravilha!
    O outro ia ouvindo e sem qualquer ar de animação ia respirando fundo e ia-o deixando falar até que ao fim de um grande pedaço de tempo, quando o outro foi perdendo a corda respondeu com o ar mais desanimado e ao mesmo tempo mais convicto deste mundo:
    – Olha pá, nem daqui a 150 anos!

    Pois, eu não diria tanto, mas sabemos bem que o mais difícil e mais complicado de mudar são as mentalidades, né? 😉 E mais ainda quando até há interesses de que a mudança seja lenta para alguns que acabam por ser o grosso da fatia do bolo que é o povo.
    Por outro lado quer-me parecer que o futuro vai obrigar muitos mais para além dos pioneiros desta aventura de rumar a um país que não é nosso, a partirem para colaborar na sua recuperação, porque Portugal por exemplo, não tem espaço no mercado de trabalho para tanta gente e nalgumas áreas nem há outra saída porque apesar dos apesares é aí que está uma grande fatia do futuro de oportunidades. Consola-me saber que vai haver outros que esperemos não tenham que passar por tanto como os que foram antes e por essa altura já cumpriram a sua missão.
    Para terminar mantenho a esperança de ver essa terra e essas gentes crescer e evoluir em tempos melhores porque adoro África e tenho-a tatuada no meu coração.

    Agradecer-lhe-ei sempre os excelentes bocadinhos que fui passando aqui na sua casa. Devagar se vai ao longe. A paciência é a melhor arma para se conseguir levar os dias sem fundir a cuca.
    Pelo que fui lendo já está mais perto o seu regresso que o meu. Há que ir passando o testemunho e sorrir a todo o encantamento dessa terra no que ainda tem de genuíno e ir contribuindo com o que nos for possível para não alimentar a corrupção.

  2. Upsss e depois de já ter escrito tanto faltou-me só dizer que de facto a pequena corrupção causa mais danos na vivência diária das pessoas, mas parece-me que de todo seja mais preocupante que a grande corrupção, afinal essa é a que no fundo alimenta a outra que lhe vai seguindo o exemplo como norma padrão e de alguma forma fazendo-a sentir-se isenta de culpas.

    Resta-me pedir desculpas pelo abuso e desejar-lhe as melhores felicidades.

  3. Cara Maré,

    É com muito gosto que leio o seu comentário que descreve na perfeição o desgaste que Luanda causa.

    Continuo a acreditar que a guerra ainda não terminou em Luanda e que apenas nesta parte do país ainda reina a lei da selva, não a nível militar, mas a nível social.

    Poucos incentivos há para fazer melhor quando se olha para os lados, ou para cima, e se vê a pequena ou grande corrupção ou os interesses comuns serem atropelados pelo comodismo ou enriquecimento ilícito.

    Ainda não perdi a esperança de que Angola se mova na direcção certa, mas seria uma viagem mais fácil se não houvesse tantas âncoras.

  4. Caro Afonso,

    Muito boa noite.

    Mais uma vez, saudo-o pela qualidade do seu blogue.

    Angola continua a ser a terra do coração da minha mãe e
    foi a terra onde o meu escolheu viver durante muitos anos
    e onde morreu em 2007, sem conseguir ver Angola a rumar
    no bom caminho.

    Quanto a mim, e como sabe, saí de Angola com 3 meses de
    idade em Junho de 1975, e nunca mais voltei.Embora adore
    o põr – do – sol de África, lamento ver terras tão belas
    e tão ricas minadas pelo espírito da ganância, da
    luxúria e ao mesmo tempo pela pobreza, abandono e
    desinteresse…

    Os franceses costumam dizer : ” maus princípios e bons
    fins”. Espero que esta máxima se aplique a Angola, pois
    gostaria de dar uma prenda fantástica à minha mãe : uma
    viagem até à Angola cicatrizada, limpa das mazelas da
    guerra, sorridente e confiante no futuro, e sem rancores
    relativamente aos portugueses.

    Espero poder concretizar este sonho…

    Gostei do comentário da Maré.

    Um abraço a ambos
    José Vila Santa

  5. É Afonso! A guerra em Luanda está para durar ainda e o que é mais duro para quem é sonhador, é acreditar que a luta dos que têm a veleidade de tentar “mudar”, seja na grande maioria das vezes inglória e não acabem feridos sem que nem tenha que ser uma bala a deixar-nos estendidos no chão.
    O sistema acaba por nos ensinar qual o verdadeiro significado da palavra impotência e acabamos por ficar minados na tristeza e desconsolo da nossa insignificância.

    Sinto demais essa terra para me conformar e desistir. Deixo-lhe um poema escrito a 4 mãos, minhas e de uma irmã que já não a poderá rever.

    Angola

    Dos sonhos escarlate, mistérios com sabor a chocolate, delírios de Pôr-do-Sol…

    Terras de carícias de mar!

    Na crença de te desbravar te golpearam magia.

    Há quem chore de saudade por te saber a verdade.
    De ti, só lembro ventura, infância de fresca loucura e pensamentos de amor…

    Contam outras gerações, em pesados cabelos brancos, que tiveste a terra em brasa, em tochas de sofrimento, engolindo crianças famintas em tiros lamurientos. Crianças feitas de osso, debruçadas sobre o lixo, bebendo águas do fosso. Envolta de epidemias, com rostos só macilentos, com mortes, gritos, aflições, misturadas com canhões em campos esquecidos de sangue… Armadilhas de clarões!
    Os corpos assim decepados são do povo que defendes?

    Não entendo!
    Não assim te lembro!

    Nas noites de trovoada, no eco do trovão iluminado, esqueço essas tuas mazelas e sonho as cores tuas de terra onde correm as gazelas em voos de liberdade.

    Num imbondeiro de lembranças me deixo adormecer… Nas sombras dos grossos galhos me sinto aquecer e nunca te vou esquecer.

    Luanda! Do sol poente, da pele torrada de quente, não te deixes enganar. Não percas tu a nascente que preciso recordar!

    Cascata de gente doce, quitandeiras ondulantes com mãos que sabem tocar

    Mãe negra, que me levas às costas, atada com sentimentos que nem sei como guardar.

    Terra linda de pensadores!

    Terra de meus amores!

    A ti sei que vou voltar.

    E voltei mas hoje não saberia continuar esta poesia de sentir. Culpa das muitas âncoras talvez 😉 Acabaria por certo por lhe estragar a essência da esperança com que foi gerado.
    Costumo dizer que o maior desafio para quem se aventura na largada para aí é o de conseguir regressar sem embrutecer emocionalmente porque revela-se heróico aguentar o “barco” que para fazer umas milhas leva tanto rombo, sem de facto perder o rumo. Quem não envereda por se deixar alienar nas noites para estravazar com a bengala do alcool e dos prazeres carnais, ao fim de pouco tempo ou vem retemprar ou acaba cacimbado.

    Um dia de cada vez e lá virão melhores dias que elevem a dignidade dessa terra e de muita gente boa que tem e merecia não morrer sem a ver em melhor direcção. É que 150 anos é bué lol.
    É preciso brincar e saber tirar proveito do que tem de bom para não deprimir senão de pouco valerão os sacrifícios.

  6. José Vila Santa

    E eu gostei do seu e da vontade de realizar esse sonho como eu sempre tive. Quem sabe se chega lá mais perto e mais breve do que hoje se consegue acreditar vai poder concretizá-lo.

  7. A grande verdade é que se embrutece mesmo e o pior é percebermos porque todos à nossa volta embruteceram de igual modo. Sinto que sou afortunado por poder, regularmente, esvaziar as reservas de embrutecimento e mau humor.

    Estou consciente do quanto Luanda me transtorna ao ponto de não querer conduzir nos primeiros dias de férias…

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