O trânsito à luz da Lei da Selva
Afonso Loureiro
A vida selvagem africana consegue explicar muitas das regras que regem os comportamentos dos condutores luandenses. Impera a lei do mais forte ou do mais apto e ninguém pensa duas vezes no elo mais fraco.
Quando um predador é pressentido por uma das grandes manadas das chanas e savanas, todos os animais dispersam, fugindo do destino fatal a que estão condenadas as presas. Assim que a fera isola e persegue um único animal, geralmente o mais fraco ou azarado, todos os outros regressam à sua rotina. Enquanto o leão estiver a comer aquele bicho não perseguirá mais nenhum e a manada voltará a pastar no mesmo local, rodeando a refeição e os leões.
No trânsito de Luanda, comparando os condutores aos herbívoros que pastam e os polícias aos leões, assiste-se a um espectáculo semelhante. Os leões, neste caso, não querem devorar a presa e contentam-se com um refresco ou uma gasosa. Assim que os condutores pressentem ou avistam um polícia na berma e se sentem particularmente azarados, começam tentar a mudar para as faixas mais à esquerda e tornar-se invisíveis no meio da manada ou seguir imediatamente atrás de um veículo maior e ficar escondidos até ao último instante, altura em que é tarde demais para o polícia atacar. Se o polícia ferrou alguém, todos respiram de alívio e comportam-se como se nada fosse. Enquanto estiver a chegar a um entendimento com aquele cidadão os restantes estarão seguros.
Da mesma maneira que cada um apenas se preocupa com fugir a tempo dos predadores, também não tem grandes escrúpulos em fechar cruzamentos, fazer manobras ilegais ou perigosas, desde que chegue primeiro que os outros. Aliás, os espelhos retrovisores são mera decoração e apenas têm utilidade na altura de estacionar de marcha à ré. Cada um preocupa-se em não bater no carro da frente, porque controlar o carro que segue atrás é inútil. Todos sabem que ele fará o possível por não nos bater, desde que façamos o mesmo a quem nos procede. O hábito de ir espreitando o espelho nas mudanças de direcção perde-se porque todos sabem que se pode esperar tudo. Muda-se de faixa com a confiança de que os restantes condutores, se seguirem um palmo que seja atrás, arranjarão o espaço necessário para que o carro caiba. Talvez buzinem em protesto da manobra inesperada, mas há que encarar isso como um balido no meio do rebanho.
Lei da Selva
A Lei da Selva pode ser resumida a um simples «Eu por mim e os outros que se lixem!». Depois de se perceber que esta é a única regra verdadeiramente válida e cumprida nas estradas angolanas, torna-se bem mais fácil conduzir e saber o que esperar dos outros motoristas.
Uma das coisas que depressa se aprende é que os estacionamentos paralelos em marcha-atrás só são possíveis se se entrar de frente no lugar e depois voltar a sair para corrigir a manobra. Se alguém comete a ingenuidade de estacionar como mandam as regras, o mais certo é não poder recuar porque alguém se lhe colou à traseira. Ao ganhar meia-dúzia de metros de asfalto cumpriu o «Eu primeiro» da Lei da Selva, ao não facilitar a manobra cumpriu o «E os outros que se lixem!». O mesmo se passa nos cruzamentos que são trancados por uns com medo de que sejam trancados por outros. Quem atravessa o carro na rua pensa «Eu já cá estou…» e nunca mais se preocupa com os outros.
Se alguém fica entalado no trânsito e o condutor de trás se apercebe que o pode ultrapassar pela direita ou na berma da mão contrária para ganhar dois lugares, não hesitará nem um segundo. Tem muita pena pelo azar do outro, mas cada um trata de si. Por esta razão, sempre que há um pequeno estrangulamento, as filas crescem a olhos vistos apenas porque há uns mais espertos que os outros que seguem fora de mão até ao aperto e depois forçam a entrada na fila por saberem que o condutor de trás está condicionado a não bater. O que se resolveria com um pouco de paciência ao seguirem todos na mesma fila mais devagar acaba por se tornar um nó górdio com duas e três filas para cada lado a tentar passar no espaço de uma.
Por estas e por outras é que os expatriados precisam de um desmame da condução angolana quando vão de férias a casa.
Tirando a parte do refresco, parece uma descrição do trânsito na Holanda! Eu sei, é inacreditável, mas verdade! Só que aqui ninguém protesta…
Em vez de refrescos podiam vender uns cafézinhos quentes…
Até parece que adivinhavas. Justamente ontem, à hora do almoço, lá fomos pastar como herbívoros que somos, e fomos interceptados por uns leões sedentos de gasosa…