O 666 não anuncia coisa boa
Afonso Loureiro
Há dias em que Luanda nos convence que a única relação que se pode ter com Angola é a de amor-ódio. Amor pelo país e ódio pela capital. Não que a cidade o mereça, mas há um acumular de situações aborrecidas que vão desgastando o pouco ânimo que resta.
Não bastando as contrariedades que afectam todos, como o trânsito, a lama nas ruas e os cortes de água e luz diários, há também uma grande parte da cidade a viver sem condições ou dignidade. Tudo isto afecta o estado de espírito dos luandenses, que sentem que a guerra ainda não acabou, pelo menos a julgar pelas condições em que se vive.
As falhas que saturam
Aquilo que talvez seja mais difícil de suportar é a corrupção dos polícias e fiscais. Em certas alturas acreditamos que se comportam como verdadeiros ladrões, usando a farda para intimidar as vítimas. A situação é tão flagrante que é fácil adivinhar que os ordenados estão atrasados quando as operações de fiscalização se multiplicam nos primeiros dias do mês.
As situações vão-se repetindo, com pedidos de gasosa ou venda de facilidades quase diários por parte de quem devia perseguir os bandidos mas ganha a vida com estes esquemas. São tão frequentes que acabamos por não contar a metade deles, para não passar por exagerados. Mas o de hoje merece relato.
Logo após chegar do trabalho, fomos a pé ao estádio dos Coqueiros, aproveitando a última luz do dia. No regresso, ao passar uma esquina, ouvimos uma interpelação habitual.
«Amigo… Amigo…»
Já nem fazemos caso, tantos são os amigos desconhecidos que nos pedem «só cem kwanzas» a cada passo que damos. Tenho pena, mas não sou um mealheiro com pernas para andar a sustentar desocupados com bons corpinhos para trabalhar em outras coisas que não sejam o levantamento Cuca. Mas o chamamento continuou.
«Amigo… Senhor…»
A variação foi estranha e olhámos para trás, tentando perceber quem era. Era um polícia de giro, com a sua farda azul. Como de costume, anotei o número da braçadeira – 666. Para quem acredita nessas coisas, não é sinónimo de boas notícias. Pediu-nos os documentos. Perguntei-lhe porquê.
«Porque é hora morta e vocês andam na rua.»
Olhei em volta. Por todo o lado se via gente a andar de um lado para o outro, ou não fosse esta uma das praças mais movimentadas da cidade. Há menos de quinze minutos atrás era de dia e o céu ainda mostrava nuvens avermelhadas. Se esta é a hora morta, custa-me a conceber como será descrita a madrugada. Mas qualquer coisa o levou a achar que o nosso comportamento era suspeito e merecedor de mais atenção por parte da autoridade. A intenção era óbvia, assegurar fundos para o jantar. Fingiu que leu os dados dos passaportes e, desconsolado por estar tudo em ordem, mandou-nos seguir.
Quero acreditar que nos quis controlar os documentos de forma aleatória, mas o certo é que os únicos dois brancos na rua éramos nós e não andou a incomodar mais ninguém. Cada vez tenho mais saudades dos polícias da província.
O problema é que no tempo colonial era o oposto, andavam os brancos à vontade mas se um negro aparecia de noite em certos sítios, a polícia caia-lhe em cima. Ficaram portanto os anti-corpos, principalmente em Luanda onde o EME anda há trinta e tal anos a fazer lavagens ao cérebro. No interior de Angola as pessoas sabem relativizar as coisas até porque nesses trinta e tal anos passaram por muito e talvez até tenham saudades da “outra senhora”. Com o tempo estas picardias irão desaparecer. É uma espécie de movimento pendular que se amortecerá ao longo dos anos.
A grande questão nesta situação não foi o controlo policial por se ter a cor errada, foi a tentativa de sacar dinheiro e a razão invocada. Em lado nenhum de Luanda é hora morta antes das sete da noite.
Os controlos policiais dirigidos a determinadas cores de pele são factos em ambas as épocas, mas para pedinchar dinheiro parece-me que é mais frequente agora.
Já várias vezes me controlaram os documentos em situações justificadas, mas desta feita queriam-me apenas controlar a carteira.
O que eu penso da origem do termo “gasosa”:
Já antigamente, se contava como piada, que os garotos das caixinhas de engraxar sapatos, pediam uma quinhenta para missão.
Missão, trocadilho, com “mission”, o nome de uma gasosa fabricada em Luanda.
“Quinhenta prá mission, patrão”
Será mesmo esta a origem da actual gasosa?
Não será apenas dessa tradição, até porque em muitas partes do mundo um pedido de suborno é disfarçado com eufemismos de sede ou fome. Aqui calha bem que as gasosas matem a sede de gargantas e bolsos.
Mas é seguro andar nas ruas da cidade?
Só querem mesmo gasosa? Bem, a polícia concerteza que só, mas há abordagens directas para extorquir dinheiro quando se é branco?
Já ouvi e li tantas histórias dessa cidade que conheci antes da independência.
Acompanho o seu blog há algum tempo, acho interessante a sua abordagem do quotidiano na cidade. Felicito-o pela escrita.
E ouso pedir-lhe um post sobre compras de alimentação no supermercado (carne,peixe,legumes,lacticinios) suas dificuldades e preços.
Um abraço.
É a fotografia dos controlos policiais, a tão conhecida “gasosa”… retrato aqui o que vi ainda hoje de manhã, mesmo em frente do prédio que vivo, como é de conhecimento geral, os carros aqui são lavados na rua por rapazes que tentam ganhar uns kwanzas, estava a ser feito ao carro de um vizinho, por acaso libanês, quando surje um reboque com dois policiais e um motorista, foram pedidos os documentos, pois o dono do carro apareceu logo, muita conversa e mais conversa, muita argumentação por parte do meu vizinho mas os policias insistiam em levar o carro, entretanto um dos policias afastasse para dentro do reboque e o outro faz o mesmo… o que acabei por ver foi o meu vizinho a entregar ao policia sentado umas quantas notas de dólar, fiquei “espantada”, não por que não soubesse que estas situaçõs acontecem diáriamente mas foi por ter visto com os meus próprios olhos!
Claro que o carro não foi rebocado apenas foi entregue ao meu vizinho um papel A4…
Vale a pena dizer mais?
O Muamba, Banana e Cola tem um artigo que pode elucidar acerca do que se pode esperar do mercado angolano.
Quanto aos preços, basta pensar num número e multiplicar por dez. Sobre os preços, escrevi algumas coisas aqui.
(…) em muitas partes do mundo um pedido de suborno é disfarçado com eufemismos de sede ou fome.
Por exemplo, em determinadas zonas da República Democrática do Congo, nomeadamente do Baixo Congo, a “gasosa” é chamada matabishi. Adivinhem de onde é que vem esta palavra…
Em tempos idos, o Português era conhecido como “Língua de branco” na região do Reino do Congo. E ainda hoje vai fazendo as vezes de língua franca povos da região.
Em Portugal é mais com caixas de robalos.
Ou submarinos!