A minha Mãe negra
Afonso Loureiro
A minha Mãe negra não é minha mãe, mas por um serão só e ainda que emprestada, foi minha Mãe.
A mãe Lúcia, por um serão apenas e ainda que emprestada, foi minha Mãe. Dizem que Mãe há só uma, mas agora tenho duas, que me olham com os mesmos olhos. Tenho de as distinguir e por isso, à mãe Lúcia chamo minha Mãe negra, mesmo sabendo que a minha Mãe negra não tem cor, ou tem a cor da outra, sei lá. A minha Mãe negra não tem cor, porque é inaudito que Mãe tenha cor aos olhos dos filhos. Mãe é Mãe e tem cor de Mãe.
A minha Mãe negra e mãe de muitos filhos, mas nenhum deles lhe chama mãe negra. Chamam-lhe apenas Mãe porque é a única que têm.
Conheci a mãe Lúcia na Gabela, onde iria pernoitar numa viagem de regresso do Huambo. O meu companheiro de aventuras e grande amigo chama à minha Mãe negra apenas Mãe, não só porque o trouxe ao mundo, mas também porque sente que ela é Mãe de verdade. Chegámos ao cair da noite e fomos-lhe fazer uma visita antes que fosse muito tarde. Acabámos por só nos separar no dia seguinte, depois de recusar terminantemente que dormisse na pensão ao mesmo tempo que me perfilhava ‘’Eu sou Mãe e Mãe não deixa que os filhos durmam em casa de estranhos. As condições não são muitas, mas há sítio para dormires.’’
A minha Mãe negra diz que gosta de umas biricocas ao fim do dia, especialmente nos mais quentes, que na Gabela são só no Verão. Diz que lhe solta a língua e a gargalhada, porque para tristezas basta a vida. Abraça-me com olhos brilhantes e mostra-me as fotografias dos filhos, aqueles que olha com os mesmos olhos que me olha a mim. Ri-se quando repara que tenho um sinal na cara igual ao da filha mais velha e continua à procura de mais fotografias.
Em mais de seis décadas de vida, ficou viúva duas vezes por causa de outros tantos desastres de automóvel, um em 1967 e outro em 1994. Fala das carreiras dos filhos, desde o mais novo, a terminar a universidade, à mais velha, a sua mulatinha que está no Brasil, filha do primeiro marido, que era branco. O meu Irmão é o filho mais velho da minha Mãe e vai acenando ao ouvir falar da família.
Enquanto me julga distraído com a paisagem lá fora, manda um dos netos comprar um sabonete e ele reclama que ainda há.
‘’Vai comprar um novo. Vá, vai depressa.’’
‘’’Tá, dá cem.’’
’’Não, desse não. Traz do outro.’’
Minutos depois, o neto voltou e correu para a casa de banho onde deixou um sabonete Lux no canto da banheira. Fui nomeado como o primeiro a tomar banho. Julguei que para ter a honra de estrear o sabonete, mas depois percebi que teria a honra de estrear a água. ‘’A guerra’’, diz a minha Mãe, ‘’estragou tudo, mas não olhes à pobreza.’’. Não olhei à pobreza de ter de levar a água à cabeça para casa, mas olhei à riqueza de a partilhar comigo.
A minha Mãe da Gabela continuou a contar a sua história e as histórias que lhe entraram pela casa adentro quando havia tiros nas ruas e todos se refugiavam na primeira porta que encontravam. Explica também que tem pena de não poder dar mais, mas não sobrou muito. Dá mais do que tem, asseguro-lhe. Sorri-me e olha para o filho, cada vez mais parecido com o pai, que lhe sorri de volta porque a gosta de ver contente.
Entretanto, surge um colchão no chão da sala. É para mim. Alguma coisa se havia de arranjar, diz a minha Mãe, com um brilho nos olhos. Parte das bananas e abacates que trouxémos connosco fazem de jantar, porque alguma coisa se havia de arranjar, rimos uns para os outros.
Pergunta-me pela família, pela minha outra Mãe, pela mulher. Quando sabe que está do outro lado do mundo avisa-me que tenho de voltar depressa ‘’Olha que as pretinhas gostam muito dos brancos!’’ e depois desatou a rir com gosto enquanto me piscava o olho.
Fez-se tarde. O meu irmão ficou com o sofá. Eu fiquei com o colchão e os dois netos adormeceram em frente à televisão que já só passava chuva, enroscados nos sofás mais pequenos.
No dia seguinte despedimo-nos com um abraço apertado e sentido, um abraço de Mãe. Agradeceu-me por ter aceite partilhar o pouco que têm, mas eu é que me sinto grato por ter encontrado outra Mãe, coisa que dizem não haver mais que uma. Deixei a Gabela com o coração apertado, cheio de vontade de não partir nunca.
🙂 foi assim que fiquei ao ler mais este …
com um sorriso na cara, Gostei!
Abraço
A minha mãe negra era a Velha Amélia. Sempre achei que o colo das mães negras era maior que o das outras mães.
lindo….muito!
Bonito…
Desculpem, mas acabei por deixar cair algumas lágrimas…Obrigado por partilhar mais esta experìência, acredito que mesmo voltando para Portugal não vai esquecer a Mãe Negra, que “deu” aquilo que todas as boas Mães oferecem.
De mãe para mãe, obrigada, Lúcia, por ter partilhado o seu coração com o meu.
Esta é que é a verdadeira África. Ela é assim mesmo: hospitaleira e generosa.
A minha mãe negra chama-se Joana e tem uns braços do tamanho do mundo. Já me fizeste chorar Afonso…saudades da Gabela e das gentes de lá e saudades da minha mãe negra, que como mora relativamente perto, na Barra do Kuanza, vou ver este fim de semana e dar-lhe um grande, grande abraço.