Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

08 2008

Desenrascanço rodoviário

A expedição à província de Benguela não decorreu sem incidentes. Numa viagem tão grande é natural que haja um ou outro percalço que tem de ser resolvido com as ferramentas que estiverem disponíveis porque, em Angola, não há uma oficina bem equipada ao virar da esquina. Nem sequer há oficinas dignas de nome nalgumas das cidades mais importantes.

Há, no entanto, muito mestres disto e daquilo que, à boa maneira africana, vão desenrascando soluções para os problemas que surgem.

Um bom exemplo são as oficinas de reparação de pneus que aqui têm o nome de recauchutagens, embora possam ser identificadas como recachotagem, recautagem, rechutagem ou só pneus. O seu único serviço é instalar e remendar câmaras-de-ar. Por estes lados os pneus tubeless não são a melhor escolha. Com tantos buracos, as jantes andam sempre empenadas e a vazar ar.

A falta de ferramentas apropriadas é crónica e os pneus têm de ser desmontados à mão, como se fossem pneus de bicicleta. Só que um pneu de automóvel tem um selo muito mais duro e é necessário fazer muita força para o fazer saltar da jante.

Em quase 2000 km de viagem só tivemos um furo, o que foi uma sorte, pois só tínhamos uma roda suplente. Mas cruzámo-nos com uns sujeitos num RAV4 que tinham furado dois pneus ao mesmo tempo, à saída de Benguela.

No nosso caso, havia uma recauchutagem uns quilómetros à frente, pelo que se pôde remendar a câmara rapidamente. O pneu foi desmontado à força de picareta e alavancas, a câmara foi sacudida e encontrou-se o furo. O mestre colou um remendo, tirou o lixo maior de dentro do pneu e instalou a câmara. Depois teve o trabalho de voltar a encaixar o pneu na jante. Foi preciso um pé-de-cabra, uma marreta, algum óleo e muito suor.


Picareta para abrir o pneu, pé de cabra para fechar

Mas não ficámos por aqui em termos de problemas. A caminho dos planaltos, já longe das cidades principais, o nível de combustível no depósito começava a aproximar-se dos níveis de missão suicida, isto é, dava para ir, mas voltar seria complicado. As bombas da Sonangol não tinham uma gota de gasolina e até mesmo o gasóleo estava nas últimas em todas. Em cada bomba nos diziam que na próxima cidade ainda poderia haver um resto, mas que ali já estava esgotada. O camião de abastecimento não passava por lá há uns dias… Mas quando recebem combustível os candongueiros açambarcam-no todo.

Há uma relação curiosa. Em frente a cada bomba seca há um candongueiro com tamboretes de gasolina cheios. Obviamente que não é vendida ao mesmo preço. Em média custa mais 50%, mas pode bem chegar aos 125% nas zonas mais remotas.

Como não queríamos arriscar chegar ao destino e depois não poder regressar e voltar a Benguela para abastecer estava fora de questão, teve mesmo de ser na candonga que se abasteceu o Jimny. Ainda se regateou o preço, mas a escolha não era muita…


Mesmo em frente à bomba oficial, a barraca Ponto de Em Contro

À semelhança do que se passa na bomba de gasolina de Ganda, aqui também se tem de encher os depósitos à mão. Neste caso basta colocar o jerrycan em cima do carro e usar uma mangueira para começar um sifão. O gosto a gasolina fica na boca do candongueiro, claro.


25 litros de uma assentada

No dia seguinte passou um comboio de camiões-cisterna e abasteceram as bombas todas. Estragaram o negócio aos candongueiros. Foi o fim das nossas preocupações em termos de combustível.

Entretanto, e porque as estradas são más, avariou-se a transmissão do Land Rover, que ficou a fazer a imitação de um tijolo no meio da estrada. Arranjou-se maneira de o fazer chegar à cidade mais próxima, onde passou o dia seguinte a ver o diferencial traseiro ser montado e desmontado. Tudo em ordem, mas continuava sem andar. Já era noite cerrada quando, naquela oficina sem telhado e sem luz, se descobriu que era um semi-eixo gasto que nos deixava apeados. A falta de peças obrigou a que se resolvesse o problema com uma solução de recurso. Este espírito de desenrasque é aquilo que mais une os portugueses aos angolanos, ainda mais que a língua.


Vamos lá ver se é desta

Apesar de estarmos dentro de uma oficina que já teve muitas condições, hoje em dia apenas o portão grande e o fosso denunciam o propósito daquele edifício que sofreu as marcas do tempo e da guerra. Não deixa de ser poético ter um céu estrelado como tecto.


Era uma oficina muito engraçada, não tinha telhado, não tinha nada


Noite dentro e ainda sem andar

Mas aquilo que mais impressão faz é ver despejar os óleos usados directamente para o chão e ter os mecânicos e aprendizes a andar descalços dentro do fosso cheio de massa consistente, óleo velho e aparas de metal. Ou até o facto de se ter usar os dentes para retirar uma mangueira cheia de óleo do tubo onde está encaixada.


Descalço no meio do óleo

Mas este fosso ainda proporcionou umas boas risadas. Na oficina estava um mais-velho, com a provecta idade de 66 anos. Passa lá os dias e conhece tudo como a palma da mão. Um pouco depois do pôr-do-Sol ouvimos um ruído surdo na frente do carro, seguido de um resmungo.

“Que foi, mais-novo?” perguntou o mestre mecânico ao mais-velho.

“Escorreguei e caí no fosso…” respondeu uma voz abafada.

“Como é que fez isso, o fosso já aí está desde sempre.”

“Não contava…”

“Magoou-se?”

“Não, estou bem. Não contava… escorreguei… deixa-me passar…” respondeu pausadamente, enquanto saía do fosso com uma agilidade surpreendente.

Tudo correu bem, mas depois foi uma risada geral.

Depois de se conversar um pouco acerca dos novos e dos velhos e do que nos reserva o futuro, o mais-velho virou-se para nós e disse “Angola é vossa! Angola é dos jovens!”

Quando ouvi a primeira frase estremeci. Pareceu-me algo vindo de uma outra era. Do tempo em que Angola era parte do Império…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Desenrascanço rodoviário”

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  1. Quem pouco tem ou nada tem, aprende rapidamente a dar a volta à questão… mas claro que é preciso muita habilidade e jeito.

  2. Estando há tão pouco tempo em Angola, tens enriquecido o teu currículo com um vasto leque de experiências. Apesar dos contratempos, não deixa de ser impressionante como nas margens da miséria existe tanta riqueza no engenho humano.
    Um grande abraço para o meu engenheiro, que tão bem sabe construir pontes com milhares de quilómetros.

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