O caderninho
Afonso Loureiro
Desabituei-me de trazer o caderninho no bolso desde que regressei de Angola. Cá uso menos camisas com bolsos e parece que tenho menos tempo e mais distracções para tomar notas. Sinto falta do bloco sempre por perto para fixar as ideias que já sei serem demasiado fugazes para se incrustarem na memória.
Talvez seja por isso que me custa começar a escrever um novo artigo sem ter um rabisco a dar o mote ou a marcar um ritmo. Antes tinha o trabalho quase alinhavado e agora não há nada para além de uma folha vazia. Pior, a folha vazia nem sequer é real, e limita-se a um pequeno espaço negro no ecrã.
As notas tomadas à mão emanam uma essência de incompletude, de algo que apenas será dado por terminado após ser traduzido, limpo e passado a letra de forma. Escrever directamente no computador é doloroso. É martelar as letras no lugar, ao passo que à mão as vou arrumando a toques de pena, por assim dizer. O desaparecimento da caligrafia é característica do produto acabado, facto ridículo quando admiro a letra horrorosa com que escrevo. As imperfeições das notas manuscritas perdoam-se, pois são apenas apontamentos e o conteúdo é o mais importante. As imperfeições de um texto batido à máquina são sempre falta de qualidade, de atenção; são desmazelo. Ou talvez não estejam camufladas pelo aspecto artesanal das notas no caderninho.
Um dos cadernos angolanos
Regressei ao bloco de notas. Desta vez mais bonito e com uma capa dura que o torna inapto para dobrar ao meio e enfiá-lo no bolso da camisa, que agora não uso. Percebi que era isso que me faltava para dar continuidade às muitas histórias que comecei, mas que nunca terminei porque cometi o erro de as rascunhar directamente no computador. O aspecto exterior era o de obra acabada, imutável, mas não condizia com o que lia – era feio e estava mal escrito. Tinha de recomeçar pelo princípio dos princípios e fazer os artigos estagiar um pouco no papel, rabiscar ideias, ligar assuntos com traços apressados e riscar tolices de maneira a que ainda as conseguisse ler para a elas não tornar.
Reparei que os rascunhos feitos no computador ou passam a obra definitiva no espaço de poucos dias, ou entram no limbo perpétuo dos artigos inacabados onde definham enquanto não me atrevo a apagá-los de vez. Na maioria das vezes perco a coragem de os retomar, mas não ganho a de os apagar.
Por uma qualquer razão sem nexo, sinto que o escrito à mão tem muito mais probabilidade de ser convertido em texto final do que o rascunhado no computador. Se calhar é o medo de deixar de compreender a minha própria caligrafia…
Concordo, tudo o que rascunhei no teclado ficou em águas de bacalhau, é um facto.
Já os apontamentos que faço em guardanapos, toalhas de mesa e envelopes, acabam sempre por encontrar um fim.