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02 2011

A pequena revolta do Egipto

Para quem não sabe, há duas revoltas a ocorrer no Egipto. A primeira, maior e mais visível, diz respeito aos egípcios. Querem que o regime mude e fazem as manchetes de quase todos os jornais.

A outra revolta diz respeito apenas aos portugueses, mas diz respeito ao Egipto. É muito mais discreta. Quase não se vê, mas não deixa de ser notada, nem que seja por que se passou a ouvir. É a reacção a um acordo ortográfico indesejado.

Há vinte anos tentou-se impôr um acordo ortográfico tão cretino quanto o actual, que propunha pérolas como a supressão do acento da palavra cágado, para além da perda de certas consoantes quase mudas. Dessa vez não fez muitos estragos na língua, porque a comunicação social em peso se recusou a aplicá-lo e acabou por ser esquecido.

Na altura os jornais eram mais independentes do que hoje e podiam escrever como as consciências dos jornalistas mandavam. Agora são quase todos propriedade de grandes grupos empresariais, com interesses também em editoras de dicionários e afins, que não perdem uma oportunidade para imprimir livros actualizados (devia ter escrito sem o c, mas não consegui). Por muito que tente, nunca conseguirei ler algumas palavras com a nova grafia sem imaginar um sotaque brasileiro que nada tem a ver com aquele com que deveria ler.

O acordo de 1990 nunca chegou a entrar em vigor, em grande parte graças aos jornais, que nunca o adoptaram. Agora, com a crise e as medidas de austeridade na ordem do dia, o acordo vai passando até não haver retrocesso. E agora passa também por causa da comunicação social.

Mas voltemos à pequena revolta do Egipto, porque é disso que este artigo vive. Parece que o p de Egipto é mudo, que ninguém o pronunciava, por isso, toca a suprimi-lo. Ironia das ironias, os habitantes do Egipto vão continuar a ser egípcios, com p e tudo. Também se diz que humidade perde o h, mas humanidade não, segundo critérios irregulares que mais parecem uma lista de excepções que de regras. E, com tanta confusão, até se aplica onde não devia, os espectadores, por exemplo, passaram a ser pessoas que espetam coisas, porque espetadores é como se tem vindo a escrever, mesmo que quase todos pronunciem o raio do c que entenderam ser mudo.

Atomiko Eusébio, mais ou menos
Vêmo-nos gregos com o acordo

Ora o p de Egipto passou a não se escrever, mas verificou-se um fenómeno curioso. Uma vez que se admite excepções à perda de consoantes mudas que se pronuciam nalguns países – facto continuará a ser facto em Portugal, e continuará a ser fato no Brasil – muitos jornalistas, e não só, passaram a fazer questão de pronunciar, bem pronunciadinho, o p de Egipto. Basta prestar atenção às notícias da grande revolta do EgiPto para ouvirmos a pequena revolta.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

6 respostas a “A pequena revolta do Egipto”

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  1. Até consigo fazer um exercício mental e ler crónicas, bem mais ácidas do que esta, escritas em 1911, 1943, 1945 e 1971 a respeito de um certo “acordo ortográfico tão cretino”…

  2. Um acordo ortográfico mexe com muito mais do que a grafia das palavras, porque não lemos soletrando e sim cada palavra como um todo. Alterar a grafia de algumas palavras muito usadas faz-nos parar muitas vezes para tentar perceber o que está escrito.

    É preciso não esquecer que é necessário adaptar a grafia à natural evolução da língua, mas também há que arranjar regras que não sejam de aplicação duvidosa. Não me cabe na cabeça que humidade perca o h e humanidade não ou que algumas consoantes mudas que tinham a função de prolongar o som da vogal anterior sejam suprimidas e palavras quase homófonas, mas de significados completamente diferentes (e, portanto, facilmente distinguíveis fora de contexto) sejam agora homógrafas, o que levará a que se tornem homófonas.

    Já anteriormente comparei os vários acordos ortográficos e concluí que este é uma compilação de palavras com nova grafia, com regras pouco claras. Outros, feitos talvez por quem tinha menos interesses, eram de aplicação mais genérica e, em caso de dúvida, aplicava-se a regra em vez de termos de ir “à lista”.

  3. Prezado Afonso,
    Nem cá, nem lá, ninguém entendeu as novas regras ou a razão delas. Somos todos espetadores de decisões que nos foram espetadas pelos espetadores ortográficos.

  4. Os políticos insistem na homogeneidade ortográfica de uma língua que cresceu livremente em quatro continentes, sofrendo adaptações por parte de cada povo. É inevitável que as diferenças ultrapassem a grafia e a própria estrutura da língua seja alterada.

    Os brasileiros vão sentir a falta do trema, os portugueses das suas consoantes (quase) mudas.

  5. Se só tivesse que usar, recusava-me a abdicar dos cês e pês que tanto esclareciam quanto à origem da palavra, mas vou ter que ENSINAR! (valham-me os deuses, gregos e latinos, que mesmo juntos ainda serão de fraca ajuda) Estão à espera que seja proativa e atuante? Vão ter uma deceção que eu quero mesmo é acção e reacção com “ás” bem abertos e que acordem os espetadores deste acordo, que não estudaram filologia nem fonética, e tanto se lhes faz assim como assado porque já era o corrector ortográfico que lhes corrigia os erros!
    M

  6. E, caso houvesse um carácter verdadeiramente uniformizador das regras, ainda se perceberia a introdução de novas grafias nas palavras, mas impôs-se uma lista de remendos…

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