O vulcão Adamastor (segunda parte)
Afonso Loureiro
O presente artigo, por ser muito extenso, foi dividido em várias partes. Esta é a segunda. A primeira pode ser lida aqui e a última aqui.
A história foi interrompida exactamente quando ocorre um tremor de terra, o momento em que uma falha liberta toda a energia acumulada ao longo dos anos. Os edifícios começam a tremer com um barulho surdo, alguns desmoronam-se e o pânico instala-se.
Nesses instantes que, aposto, parecem durar horas, o mundo fica virado do avesso. A confiança na imutabilidade da Terra desaparece e a ideia de que há em funcionamento forças mais poderosas do que imaginamos deve ocupar o espírito. Está assegurada matéria-prima de primeira ordem para mitologias e histórias fantásticas.
A propósito disto, o meu primo J. enviou-me dois textos. Um pequeno excerto do Canto Quinto d’«Os Lusíadas», e algumas páginas do livro «Deuses, Mitos e Lendas» (ISBN: 9789724816197), onde se interpreta a mitologia da grande epopeia de Camões.
Na passagem do Cabo das Tormentas, os portugueses enfrentam o sinistro Adamastor, um gigante que viu a sua carne transformada em penedo frio e escuro, como castigo por se ter apaixonado como uma ninfa. A sua fúria cega, à altura da sentida pelo cíclope Polifemo contra Ulisses, é alimentada pela desilusão, pelas ondas que o fustigam e pelos cascos das naus que por ele se roçam, como que fazendo mofa da sua imobilidade. Contra as naus e os viajantes se vinga do seu castigo injusto. Adamastor é o guardião do Cabo das Tormentas e defendê-lo-á com todas as suas forças.
A certas alturas, a descrição do gigante pode ser comparada com a de uma erupção no mar. A lava que escorre para o oceano e se transforma em penedos numa nuvem de vapor, o vento quente que sopra e as explosões que projectam rochas pelo ar parecem encaixar na perfeição num Adamastor em fúria. Teria Camões presenciado alguma erupção vulcânica que o inspirasse?
Apesar de não ser fácil saber com certeza o que viu o poeta, pode-se tentar cruzar cronologias e procurar algumas provas que sustentem esta hipótese. Para a refutar haverá dezenas de outras interpretações, mas a biografia de Camões tem tanto de desconhecido como de interessante.
Sabemos que Camões viveu quase três lustres no Oriente, ao serviço do rei. Em 1553, partiu de Lisboa numa nau comandada por D. Fernão Álvares Cabral, ocupando o lugar de um escudeiro destacado para a Índia, possivelmente como maneira de sair da prisão após ter ferido um moço de arreios de D. João III – Camões era atreito a brigas e isso levou-o muitas vezes ao calabouço.
Chegou a Goa no ano seguinte, tendo sido de imediato enviado para a costa do Malabar e Golfo Pérsico. Mais tarde navegou para a China e, provavelmente, até Macau, onde se diz ter escrito parte da epopeia. Conhecendo estes destinos e as rotas comerciais da época, uma vez que apenas de barco se conseguia vencer tais distâncias rapidamente, podemos restringir a procura de pistas para uma eventual inspiração vulcânica do Adamastor a algumas zonas específicas.
O Estreito de Malaca era a principal ligação entre os oceanos Índico e Pacífico. No séc. XVI, quem deixava Goa aportava em Malaca e depois seguia viagem para norte, em direcção à China, ou continuava para Este, até um dos mais importantes entrepostos da época, o Forte de São João Baptista de Ternate, ou simplesmente, Fortaleza de Maluco. A ilha de Ternate faz parte das famosas Molucas, as ilhas da pimenta.
Os dedos de Adamastor
É preciso não esquecer que a Indonésia actual se localiza numa longa crista de vulcões formados ao longo da zona de subducção das placas Euroasiática e Indoaustraliana e foi precisamente nesta região que ocorreu o grande sismo de Natal de 2004 e cujo maremoto associado causou perto de um quarto de milhão de mortos (ver a primeira parte). Ao longo dos Estreitos de Malaca e Sunda há inúmeros vulcões activos, alguns dos quais se sabe terem sofrido grandes erupções durante a passagem de Camões – Monte Merapi em 1554 e 1560, vulcões Rajabasa e Kelud pela mesma altura. Infelizmente, quase todos se localizam no lado sul de Samatra ou muito no interior, pelo que são candidatos improváveis.
Na ponta oriental da ilha de Samatra havia um imponente vulcão a rematar o Estreito de Sunda. Chamava-se Krakatoa e explodiu em 1883, embora se saiba que tenha havido grandes erupções nos séculos anteriores. O Estreito de Sunda, não era rota habitual, pois obrigava a contornar Samatra pelo sul, por mares mais perigosos. Também o Krakatoa tem de ser descartado como inspiração para o Adamastor.
Na outra ponta de Samatra, no mar de Andamão, já parte do oceano Índico, a pequena ilha de Weh foi formada por um vulcão e faria parte dos pontos de referência da navegação. Os seus penedos escuros e frios mergulham no mar, mas estão adormecidos e silenciosos há milénios. Camões viu-os certamente, mas o gigante Adamastor não se escondia aqui.
Continua aqui.
Deixe uma resposta
Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.