O vulcão Adamastor (terceira parte)
Afonso Loureiro
O presente artigo, por ser muito extenso, foi dividido em várias partes. Esta é a terceira e última. A primeira pode ser lida aqui e a segunda aqui.
A história foi interrompida quando se ponderava se haveria algum vulcão em actividade em meados do séc. XVI capaz de inspirar a descrição do gigante Adamastor, o guardião do Cabo das Tormentas. Vários vulcões foram analisados e excluídos. Merapi, Rajabasa, Kelud e Krakatoa estiveram em erupção na época certa, mas a sua localização não se adequa à biografia de Camões.
É precisamente nas ilhas Molucas que encontramos o candidato mais provável para um vulcão capaz de inspirar Camões na sua descrição do gigante Adamastor e da sua força telúrica. A fortaleza de Ternate foi construída à sombra do vulcão Gamalama, que sofreu uma violenta erupção em 1561, com nuvens de cinza, abalos e explosões ruidosas e derramamento de lava no mar. Mesmo que Camões não a tenha presenciado directamente, o que é provável uma vez que, em 1560, naufragou na foz do Mekong, nas costas do actual Camboja, regressando a Goa em 1561, a importância do lugar certamente lhe terá feito chegar relatos fidedignos da mesma. Por esta altura já tinha escrito a epopeia e, reza a lenda, terá nadado com um só braço para salvar o manuscrito de se perder no mar, mas também é certo que lhe daria os últimos retoques em Moçambique, alguns anos depois.
«Assi contava, e c’um medonho choro
Súbito d’ante os olhos se apartou
Desfez-se a nuvem negra, e c’um sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos que Adamastor contou futuros.»Os Lusíadas, Canto Quinto, estrofe 60 (o desaparecimento do Adamastor)
Um outro candidato a vulcão Adamastor seria o Gamkonora, situado a algumas centenas de quilómetros a norte de Ternate, cuja primeira erupção de que há registo data também do séc. XVI, mais precisamente, em 1564. Esta, porém, não ocorreu num local tão importante como a anterior.
Em Goa, Camões é preso por se ter apropriado indevidamente dos bens que tinha à sua guarda, por inerência das funções que desempenhou na China. Julga-se que esta prisão terá sido injusta, mas não se conhecem provas em contrário. Será libertado em 1562. Nos anos seguintes vive em Goa, sob protecção do vice-rei, mas sempre queixando-se da vida difícil e sonhando regressar a Portugal.
Em 1567, consegue embarcar numa nau ao serviço de D. Pêro Barreto, novo capitão de Moçambique, que lhe custeia a passagem para a Ilha de Moçambique e lhe promete emprego. Ao que consta, essa promessa ficou por cumprir, assim como o pagamento da dívida, pelo que Camões foi preso mais uma vez. Na prisão, reescreve algumas partes d’«Os Lusíadas» e, em 1569, consegue regressar a Portugal, com o auxílio de D. Diogo Couto e outros amigos, que lhe pagam as dívidas.
Adamastor, após longos anos de guerra em causa alheia (como Camões), apaixonou-se por uma ninfa que certa vez viu na praia. Era Tétis, um amor proibido (como aconteceu inúmeras vezes a Camões). Resolveu tomá-la pelas armas, mas foi enganado por Dóris, a filha de Tétis, que lhe armou uma cilada, prometendo-lhe um encontro com a ninfa desejada. Correu para os braços do que julgava ser Tétis, mas viu-se abraçado a um duro penedo.
«Converte-se-me a carne em terra dura
Em penedos os ossos se fizeram
Estes membros que vês e esta figura
Por estas longas águas se estenderam;
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os Deuses; e, por mais obradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.»Os Lusíadas, Canto Quinto, estrofe 59 (transformação do Adamastor)
A Camões foi-lhe prometido regresso à pátria, mas acabou encarcerado, sabendo haver navios destinados a Portugal passando pelas paredes da sua prisão. Esta última visita ao cárcere no Oriente pode explicar parte da caracterização do Adamastor, do sentimento de ter sido ludibriado, da resignação e frustração, qual Adamastor que sente a amada Tétis por perto. As descrições ouvidas da erupção em Ternate, as paisagens vulcânicas que viu, a sua experiência a dobrar o Cabo da Boa Esperança na década anterior e a própria situação em que se viu, preso por uma dívida que julgaria poder pagar se o emprego prometido não tivesse sido apenas um logro de Pêro Barreto, encaixam na imagem que nos deixa de um Adamastor amargurado e vingativo.
– «Eu sou aquele oculto e grande cabo
A quem chamais vós outros Tormentório
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a africana costa acabo
Neste meu nunca visto promontório,
Que para o Pólo Antárctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.»Os Lusíadas, Canto Quinto, estrofe 50 (Adamastor narra a sua história)
O Cabo das Tormentas, com as suas escarpas abruptas e mares revoltos no encontro do Atlântico com o Índico era um desafio terrível para a navegação, cuja descrição ficaria sempre incompleta caso Camões não ousasse criar um gigante traído, de fúria inesgotável, que fizesse jus ao temor que aquela passagem causava aos navegadores.
As rotas mais seguras, com um longo desvio para Sul, passavam ao largo do cabo, aproveitando as correntes fortes dos oceanos austrais que, sem continentes a impedir a passagem das águas, circulam à volta da Antártida. Apesar disso, a grande diferença de temperaturas do Atlântico para o Índico, é causa de grande agitação e tempestades. Uma rota mais austral não evitava as tempestades, mas evitaria um naufrágio nas rochas.
O poeta bebeu inspiração ao longo das suas muitas aventuras. Pelas descrições que faz dos lugares e das viagens temos a certeza que passou grande parte da vida naquelas paragens, sofrendo e lutando como aqueles sobre os quais escreve. Talvez tenha ouvido falar da erupção de Ternate, certamente viu muitas vezes escarpas vigorosas como dentes afiados a ameaçar os cascos, talvez haja ainda mais que tenha visto e que não saibamos pois, é preciso não esquecer, Camões era personagem quase insignificante na época, membro da baixa nobreza caído em desgraça, e o que sabemos da sua vida deve-se à interpretação de factos dispersos, da sua obra, de pequenos relatos de amigos que lhe reconheceram o génio ainda em vida. Tal não impediu que morresse na miséria, sustentado pelo fiel António, o escravo jau.
«Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
– «Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?»Os Lusíadas, Canto Quinto, estrofe 38 (Adamastor anuncia-se)
Se Camões se inspirou num vulcão para parte da caracterização do Adamastor é incerto e até discutível, mas comecei esta viagem sem saber o que encontraria. Sei agora que, apesar de rebuscado, é possível que Camões tenha presenciado ou ouvido relatos em primeira mão de uma erupção importante ocorrida na região onde vivia na altura. Se essa experiência moldou o Adamastor de alguma forma, só ele o poderá explicar.
Geologia/Poesia
Comecei por recordar aulas de ciências de há muito e perdí-me com tanta literatura – quase nos faz apaixonar por terramotos, vulcões e outros sustos.
Adorei o artigo e tenho a certeza que vou voltar a ler “Os Lusíadas”, desta vez com outra disposição.
Parabéns!
Ao cruzar as várias áreas do conhecimento, sejam elas a geologia, a astronomia ou a literatura, encontramos novas esferas para explorar. É um atentado à curiosidade humana tentar compartimentalizar o saber, espreitar o mundo pela fechadura em vez de abrir a porta.
Os melhores professores que tive contavam histórias que, à primeira vista, pareciam estar desligadas do que queriam ensinar, mas acabavam por fazer todo o centido. O certo é que são essas as lições que melhor recordo.
Neste artigo procurei misturar um pouco dois mundos distintos. Fico feliz por ter sido bem sucedido.
A matemática entende-se
Os lusíadas estudam-se
Você compreendeu-o
Obrigado por estas palavras escritas e deixadas ao acaso
numa página tecnológica facilitando momentos de leitura a quem procura conhecimentos históricos.
Como foí Ulisses salvo de caríbdis?
obrigado Helena
Ulisses teve de escolher entre dois monstros mortais, Sila e Caribdes. No seu primeiro encontro perdeu seis homens, devorados por Sila. No segundo e já sozinho, conseguiu salvar-se de Caribdes graças ao que tinha aprendido na viagem anterior.
Curiosamente, fui reler a descrição de Sila, o monstro de seis cabeças que vivia em frente a Caribdes. Aceita-se que o Estreito de Messina, com as suas correntes fortes e importância para a navegação até nos nossos dias seja representado por Caribdes. Sila, por seu lado, representaria a Sicília, com o grande vulcão Etna em destaque.
A morada do monstro é descrita como um penedo altíssimo, feito de pedras lisas, com uma caverna no meio (a caldeira). Da caverna ouvem-se uivos como os animais ferozes e os seis pescoços de Sila saem da caverna como que projectados.
Homero descreve um vulcão como se fosse um monstro. Camões parece ter feito o mesmo, talvez inspirado pelas suas viagens, talvez por seguir o roteiro homérico.
Desculpe o atrevimento, foi um aparte. O primeiro filme que vi em Portugal foi precisamente ulísses, mas entre ficção, mitologia e a vida tal igual como ela é, prefiro a versão treceira. Era um filme muito antigo, e marcou a minha chegada a este país.
Obrigado