O rival
Afonso Loureiro
De há uns dias para cá começámos a ouvir martelar nas traseiras todo o dia. Pelo som abafado, suspeitámos de algum vizinho que estivesse a pendurar quadros ou a cortar lenha com pouca convicção, mas o ritmo era estranho e durou o dia inteiro. Felizmente, assim que o Sol se punha, o barulho parava.
Para nosso infortúnio, recomeçava bem cedo e a manhã fazia-se tarde e a tarde fazia-se noite sempre acompanhadas de um poc-poc. Seria chuva? Seria gente? Gente não era certamente e, apesar do muito frio, não chovia há semanas. Também descartámos a hipótese de neve, nem que seja porque a neve não bate assim. Mas, qual tortura chinesa da água, as pancadinhas sucediam-se sem ritmo ou padrão aparente.
Numa tarde, não resistindo à curiosidade de saber o que fazia este barulho irritante e parecendo-me ser mais forte no quarto dos fundos, abri a porta de rompante. Deparo-me com um lustroso melro empoleirado na guarda da varanda, contemplando o seu próprio reflexo na vidraça como se enfrentasse um rival.
Este é o meu território. Capisce?
Infelizmente para ele, este rival é do mais teimoso que existe. Mostra-se irado quando ele se zanga. Olha-o em desafio quando ele lhe tenta mostrar que é mais forte mas, acima de tudo, ataca exactamente ao mesmo tempo que ele. Ao fim de alguns dias, a disputa territorial com o reflexo tornou-se uma obsessão para o pobre melro. Passa lá tanto tempo que até a floreira começa a mostrar uma clareira no meio dos rebentos de menta.
Linguagem mais forte
Quando a intimidação só não chega, lança-se numa nuvem de penas, garras e bico de encontro ao rival. Saem os dois quase ilesos. O do reflexo vai aparentando ficar com as penas em maior desordem e algo cansado. Deve ser bom sinal. Mais uns ataques e abandona a escaramuça. Mas é mais teimoso do que parece. Nunca cede.
A fazer cara de poucos amigos
Quando um ataque falha, coisa que acontece sempre, a intimidação é o passo a seguir. Baixa a cabeça, faz inchar um pouco as penas para parecer maior e lança um olhar furioso. O rival faz exactamente o mesmo. Há-de tentar atacá-lo outra vez.
A Cristina bem me dizia que a janela se sujava mais depressa que as outras. Agora já sabemos que é uma mistura de sebo, poeira e saliva de melro.
Esta história faz-me lembrar as pombas em Lisboa, que insistiam em esbarrar nos vidros espelhados do último andar da empresa. E quem estava a trabalhar sossegado apanhava com cada susto… seguido de riso, ao ver o ar aparvalhado da pomba que tinha sorte em ter uma varanda a aparar-lhe a queda.
Ora, ainda bem que encontro alguém que já teve o mesmo problema que eu. Desde a 1ª semana de Janeiro, que tenho 1 melro a sujar-me 2 janelas, quando está cansado delas, vira-se p/os espelhos retrovisores dos carros no n/ quintal ou dos vizinhos na rua. Tou desesperada, pois o “fulano” faz questão de insistir e não arreda asa. Está o tolo a desperdiçar o inicio da Primavera (que ainda ta longe), a deixar de arranjar alguma namorada jeitosa, para se atirar às janelas, meu Deus, até os animais andam tolinhos.