Tu. Você. O senhor.
Afonso Loureiro
Há certas memórias que se enraizam em nós sem que saibamos exactamente porque razão. São memórias simples, que devem fazer vibrar o nosso diapasão interior de tal forma que destronam o que achamos ser verdadeiramente importante recordar e acabamos por esquecer.
Se calhar, são estas as verdadeiramente importantes, as que nos moldam a personalidade e a consciência. As outras sejam meras ferramentas para o cérebro, uma simples colecção de conhecimentos adquiridos.
Esta pequena introdução deve-se ao despertar de uma dessas memórias simples mas marcante que foi despertada quando quase dava uma cabeçada num novo cartaz publicitário que instalaram no meio do passeio. Vinha distraído, como é evidente.
Reparei que o anúncio tratava o futuro cliente do produto em questão por um demasiado familiar tu. Decalque do inglês original, em que o tu e o você são substituídos por um singelo you que não compromete ninguém.
Esta demasiada familiaridade senti-a como uma invasão ao meu espaço pessoal, um pouco como a sensação desagradável que se tem quando o vendedor de carros usados insiste em tratar-nos pelo primeiro nome, como se fôssemos amigos de longa data.
A publicidade sizuda, que tratava os clientes por Vexa., e assinava com sinete e rebicoques já lá vai. Desapareceu ao mesmo tempo que as lojas começaram a perder os balcões que separavam os clientes dos comerciantes. Desapareceu com a chegada do pronto-a-vestir, mas um pouco de respeito ainda é o mínimo que se pode pedir. Ninguém pede que continuem a escrever «Queiram fazer a gentileza de experimentar os nossos produtos», mas um modesto «Experimente os nossos produtos» demonstra um bocadinho mais de fineza no trato que um «Experimenta, pá!» Chega a ser grosseiro.
Parece que os anúncios para crianças e adolescentes têm de usar apenas o tu. Diz que as crianças se identificam mais com a mensagem. Talvez seja, mas parece-me mais que seja um daqueles dogmas das agências de publicidade. Insistir neste tratamento demasiado informal para outras faixas etárias é assumir uma relação de proximidade que não existe, ou insinuar que os possíveis clientes não passam de crianças.
Tratam-se por tu
Nestes poucos segundos de reflexão logo a seguir à cabeçada evitada, veio-me à memória um texto reproduzido num livro da instrução primária de cujo autor não me recordo – uma das características destas memórias importantes é a de serem destiladas de todo o acessório.
O texto descrevia um sargento a fazer um exame de matemática aos mancebos para lhes aferir as competências. Como o mancebo vulgar tem uma categoria abaixo de desprezível, o sargento chamou um ao acaso com um quase grosseiro «Tu aí!»
O problema era complicado, mas o mancebo de ar frágil começou a resolvê-lo de uma forma diferente da habitual. Antes que o sargento tivesse oportunidade de reclamar, chegou ao resultado certo. Embasbacado, o sargento perguntou «Mas quem é você?»
O mancebo explicou que era licenciado em matemática aplicada pela Universidade de Coimbra, o que deixou o sargento bastante embaraçado e capaz apenas de se desculpar com um «O senhor já podia ter dito».
É verdade que os portugueses levam gradações de tratamento de deferência quase ao extremo, mas também não se pode cair no exagero para o outro lado e tratar tudo e todos por tu.
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