Parceria Público-privada quase medieval
Afonso Loureiro
Havia um convento no alto de um monte que tinha um burro. Certa vez, durante uma qualquer guerra, o exército quis confiscá-lo. As freiras argumentavam que o burro era essencial para o convento porque sem ele não tinham maneira de trazer coisas essenciais do sopé do monte. Eram todas muito velhas e o burro permitia aligeirar a carga. O oficial encarregue do confisco teve pena das freiras e deixou-lhes o burro.
A guerra continuou e, passados uns meses, voltou a ser exigido o confisco do burro das freiras. Os mesmos argumentos foram invocados de parte a parte. O burro era essencial para o esforço de guerra e sem o burro as freiras não podiam continuar a vida no seu convento. As freiras ganharam novamente.
Durante vários anos o Quartel-General foi pedindo o confisco do burro do convento, mas tal nunca aconteceu. Todos os oficiais ponderavam o valor do burro para a guerra e achavam que mais valia deixá-lo com as velhas freiras.
Até que a guerra acabou. Um dos oficiais que quis confiscar o burro acabou por perguntar às freiras porque era o animal não necessário para o convento, uma vez que elas consumiam apenas o que cultivavam na horta ou criavam no galinheiro. A Madre Superiora esclareceu de imediato que o burro era de extrema importância pois sem ele não havia maneira de ir ao vale buscar palha para o burro.
A máquina burocrática e legislativa de hoje é um pouco como o burro do convento. Existe para justificar a sua existência. Quando já está tudo regulamentado inventam-se novos regulamentos para alterar os antigos. Quem ganha a vida como legislador não pode um dia decidir que tudo está legislado. Se não há mais nada para legislar, legisle-se acerca da largura máxima permitida para as riscas amarelas das abelhas, legisle-se até ao ponto do bom-senso ser abolido e depois legisle-se para que ninguém o possa instituir outra vez. A burocracia existe para ir buscar mais burocracia ao fundo do vale para a burocracia comer.
Hoje em dia, quem quer abrir uma empresa, pedir uma licença para alguma coisa ou apenas perguntar se pode inspirar profundamente quando se espreguiça, atravessa um mar de regulamentos e requisitos que deixariam Kafka espantado. Licenças para isto, pedidos de vistoria para aquilo, taxas, taxas das taxas, impostos nas taxas e nas taxas das taxas, selos, carimbos e formulários on-line que se têm de mandar por correio registado. Tudo é contrário à lei a não ser que explicitamente permitido.
Nem sempre foi assim. Épocas houve em que o bom-senso reinava e se assumia que nada era contrário à lei excepto quando expressamente proibido ou causasse perturbação à ordem pública. A febre legislativa que tornou tudo tão complicado e burocrático veio estragar um esquema que durou milénios.
No Concelho de Loures, numa pequena povoação de seu nome Bolores, há um pequeno exemplo do sistema antigo, quase medieval, aplicado já no séc. XX. É a prova de que se pode viver sem o embrulho da burocracia.
Fonte de Bolores
O proprietário de um terreno quis aproveitar a água de uma nascente em terras públicas. Hoje seria impossível, o Estado, que não e pessoa de bem, preferiria selar a nascente a sequer pensar que alguém poderia usar a água sem taxas, licenças, coimas e inspecções. Na década de 1950, não era preciso tanto.
O aproveitamento foi permitido com algumas contrapartidas, dignas de constar num foral fernandino. O dono do terreno construiria, a custas suas, um chafariz para usufruto da população. Teria direito a canalizar para o seu terreno toda a água sobejante. Faz lembrar o regulamento do aqueduto de Évora, que contemplava o calibre máximo dos ramais. Nas caixas de saída do ramal era instalado um pequeno canudo de barro com a abertura permitida, que regulava o caudal. Toda a restante água continuava pelo aqueduto até chegar a Évora. Os proprietários trocavam a incerteza das suas captações por uma parte fixa do caudal do aqueduto, cendendo as suas nascentes ao canal principal.
Parceria Público-privada
Em Bolores, a fonte foi construída. O município fica com a obra feita, e o Sr. Francisco João pode usar a água que sobrar. É o que se chama uma parceria público-privada em que todos ganham, não daquelas modernas em que o Estado constrói o chafariz, paga a água ao dono do terreno e este ainda pode cobrar a quem dela beber.
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