As botas do Tio Torres
Afonso Loureiro
Nunca conheci o Tio Torres. E só consultando a árvore genealógica da família consigo perceber qual o remoto grau de parentesco que nos une. Era homem do séc. XIX e morreu muito antes de eu nascer.
É presença assídua nas histórias e lendas de um dos ramos da família, em parte por ter terminado a vida hipocondríaco, mas principalmente por ser casado com a Tia Capitulina, personagem merecedora de vários volumes no anais familiares – segundo um primo, por sinal sobrinho da dita senhora, era maluca mas ninguém o queria admitir.
Esse primo, que morreu muito recentemente, também esteve envolvido nalgumas histórias, ou não fosse homem ligado às Artes, ao Teatro, ao Cinema e ao Circo, entre tantas outras coisas. Era arquitecto de formação e é por causa dele que as botas do Tio Torres são chamadas à baila.
Como todas as histórias, precisa de uma pequena introdução. Não se pode começar a falar directamente nas heroínas da história, neste caso as botas, sem introduzir as personagens secundárias que, por inverosímil que pareça, são uma agência de viagens, um restaurante falido e um poeta. Tudo começa no Porto.
No topo oriental da Avenida dos Aliados, há uma agência de viagens igual a tantas outras. A única coisa que a distingue é uma escadaria a meio da loja, encostada à parede direita, que dá acesso a uma sobreloja. Recuando ao início da década de 1950, a loja não era uma agência de viagens. Era o Restaurante Garrett, de cujo projecto arquitectónico era autor este meu primo. Dele também era as aguarelas que decoravam as ementas do dia de abertura e a imensa pintura a óleo de Almeida Garret que ocupava todo o pé-direito da parede esquerda da loja. Das mesas da sobreloja via-se o poeta da cintura para cima. Das mesas do fundo da sala apenas da cintura para baixo. Para a contemplar devidamente era necessário parar em frente às escadas ou espreitar pela montra.
Do restaurante pouca memória ficou. Fechou ao fim de algum tempo por desinteresse dos sócios. Dizia-se que, ao fim da primeira semana, jantavam frequentemente no Montenegro, o da célebre Mamuda, ali para os lados da Praça da Batalha.
Com o fecho do restaurante, perdeu-se o paradeiro da tela. Certamente foi destruída para dar lugar a outra decoração. Pelas poucas fotografias da época, percebe-se um Almeida Garrett de pé, voltando as costas a uma tempestade que lhe despenteia o cabelo. Sendo este primo um perfeccionista nas questões de trajes – escreveu a História do traje (cujo manuscrito está a cargo do Museu Militar do Porto), retratou o poeta com roupa da época. Infelizmente, os retratos conhecidos de Almeida Garret representam-no apenas da cintura para cima, na melhor das hipóteses, cortado pelos joelhos. Para evitar cair nos erros do cinema em que os legionários de Júlio César correm de ténis ou ver o Errol Flynn a mostrar o seu cabelo do séc. XX na corte do Rei João, foi perciso encontrar calçado da época. É aqui que entra o Tio Torres, que em novo tinha sido oficial de Marinha, com farda e respectivas botas contemporâneas do próprio Almeida Garrett, requisitadas para servir de modelo.
E foi assim que as botas do Tio Torres se viram imortalizadas nos pés de Almeida Garrett.
Caramba, que grande volta! Muito bom 🙂
Gostei muito. A sua crónica mais uma vez é fantástica.
Mais por favor!