Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

30  03 2009

A Rusga

A noite estava quente e o sono era constantemente interrompido para voltar a almofada ao contrário, na esperança que o outro lado estivesse mais fresco. Nunca estava. A rede mosquiteira enrolava-se nos pés e nas mãos que fugiam ao calor. O lençol enrolava-se às pernas e aos braços húmidos e peganhentos. Lá fora, a ocasional mota barulhenta fazia disparar os alarmes histéricos dos carros. Nada de novo, portanto. Uma noite de Verão em Luanda igual a tantas outras.

Mas, eis que há novidades! Às dez para as cinco da matina, há um anormal (na altura chamei-lhe e à sua digna mãezinha uma série de outros nomes) que se lembra de desatar a buzinar como se não ouvesse amanhã ou gente a dormir.

Duas, três, quatro, dezasseis vezes. Será que alguém trancou um carro? Aqui na rua não é costume. Começam a ouvir-se vozes na rua e nas escadas. Pancadas na porta e nas grades de alguém. «Ó vizinho, ó vizinho!». O vizinho devia estar surdo, porque nunca mais aparecia para tirar o carro.

Levantei-me e fui à janela, de mau humor, cheio de vontade de perguntar ao buzinador de repetição se achava bonito acordar as pessoas àquela hora. Na rua estava um Land Cruiser branco do «Serviço de Migração e Estrangeiros – Fiscalização». Perdi a vontade de reclamar. O condutor aplicava-se a fundo no botão da buzina, espreitando de vez em quando pela janela.

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Filho de uma grandessíssima santa

«Bonito, uma rusga de madrugada…», pensei.

As vozes e os barulhos acalmaram, mas a buzina continuava em grande. Até que parou. O condutor saíu do carro e arrastou-se até à porta do salão de jogos. Achei estranho. Talvez fosse do sono. Passado um bocadinho, regressou, segurando uma lata de cerveja e encostando-se aos carros estacionados. Vem para uma rusga podre de bêbado. Mas que bela imagem dá do país.

Buzina mais meia-dúzia de vezes e depois arranca fazendo chiar os pneus. Não estava mais ninguém no carro. Será que perdeu os colegas? Será que só me queria acordar?

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “A Rusga”

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  1. Afonso
    Ao longo das suas crónicas fiquei sua fã,agradeço as cores os cheiros e o calor…as emoções!

    Inicialmente procurava apenas informação acerca de Luanda, cidade que se tornará minha, apartir de Maio próximo,depois do seu blog,acredito que em Angola serei feliz.
    Os amigos e familia acham que estou “doida” por ir para Africa, sem conhecer ninguém mas acho que senti o “apelo de Africa”…fará sentido ou estarei pronta para uma longa estadia num hospital psiquiatrico?!

    Angola das suas histórias devolveu-me ao que é realmente importante…a esperança e o acreditar num amanhã melhor.Embora para alguns, esta minha visão seja demasiado puritana ou lirica, sei que devemos seguir o coração,nada tem a ver com cifrões!Apenas com a vontade de aprender,ensinar e ajudar a criar algo,podemos fazer a diferença!

    Aos que nos vêem como sanguesugas, apenas posso dizer, que sei que Portugal não foi boa “madrasta” para Angola (ou qualquer outra ex-colónia) mas asseguro que também nunca foi boa pátria “mãe”…não deixamos de ser irmãos de criação por isso!

    Afonso Obrigado pela ajuda na minha tomada de decisão.
    Encontramo-nos por Luanda para um café ou gasosa…
    Abraço

    Abraço

    Marina Mill

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