Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

09 2008

Avenida de Portugal, curioso

Como continua a faltar a electricidade cá em casa, fui dar uma volta até à marginal. Luanda respira uma atmosfera nova. Nem aos Domingos está este ambiente descontraído. É um dia preenchido apenas pelo voto, depois vai-se dançar ou ouvir música com os amigos. Bebe-se gasosas porque a cerveja já esgotou.

Coisa rara, há pessoas a passear na rua. Só a passear. Dão passos lentos e conversam. Há assembleias de voto à vista umas das outras. Aqui na rua há duas. Ambas debaixo dos letreiros de dois bancos. O processo tem decorrido sem incidentes. A grande afluência matutina foi substituída por uma acalmia ao final da tarde. Já não há filas para votar. Há muitos elementos das mesas que conversam à volta dos frascos de tinta onde se molha o dedo.

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Ao final do dia

Os amigos encontram-se à boca das urnas e perguntam se só é preciso o cartão de eleitor. Ouve-se perguntar «já votaste?»

Os candogueiros circulam quase vazios. Os poucos que se avistam nas paragens habituais, mudam o seu destino várias vezes até que apareça um cliente. «éroporte, éroporte… congolenses-praça, congolenses-praça… sanpáuló, sanpáuló…» mas os clientes não chegam.

Hoje foi o dia em que senti ser possível andar de máquina fotográfica em punho sem ser incomodado. Não a levei, claro. Pude apreciar muitos pormenores que me têm passado despercebidos.

Cruzei-me com dois bêbados crónicos, com ar de quem me queria pedir Kwanzas. Assim que me interpelaram perguntei se já tinham votado. Julgo que ficaram desarmados. Não estavam a ser bons angolanos e eu pus o dedo na ferida. Não, ainda não tinham votado… «perdermos o cartão de eleitor, mas…» começaram a agarrar as mãos, envergonhados, e foram-se embora. Quase apostava que estavam corados.

Encontrei mais uns seguranças a discutir o futuro do país. Ficou-me na memória a frase de um «Não interessa se é preto ou branco. Não interessa se fala o dialecto kimbundo ou se fala do dialecto umbundo. É angolano!»

Todas as lojas estão fechadas. Nem as zungueiras apareceram para cumprir os seus turnos de doze horas diárias com o alguidar à cabeça e o filho às costas. Não há cafés abertos.

Os problemas de organização que marcaram estas eleições nalgumas assembleias de voto já foram corrigidos, espera-se. O encerramento das urnas, previsto para o final da tarde de hoje, foi adiado paraque todos votem. O porta-voz da CNE garante que «enquanto houver eleitores para votar, manteremos abertos os locais de votamento».

À entrada do Largo da Mutamba encontrei uma placa caída. Habitualmente serve de banco e as pernas das pessoas ocultam a sua inscrição. Hoje estava desocupada. Apercebi-me de que se tratava de mais um pedaço de História. Neste caso, um pedaço de sucata com 33 anos. Trouxe-me um novo significado para o local onde habito. Afinal, segundo diz a placa, moro na Avenida de Portugal.

A electricidade foi-se ontem ao final da tarde. Tem regressado aos poucos à rua e às casas. O nosso prédio já tem, mas nós continuamos às escuras. Só uma das fases tem tensão. Tínhamos 33% de hipóteses de ter luz, mas perdemos a aposta. Tentei corrigir a situação, mas parece que o electricista que fez a ligação tinha medo que os cabos fugissem e usou uma chave de rodas para apertar os terminais. Desisti.

Como hoje é dia de folga, a EDEL não tem pessoal para acudir a todos estes pequenos problemas que vão acontecendo um pouco por toda a Luanda. A nossa única pergunta é porque raio acontecem sempre estas avarias nas vésperas de fim-de-semana?

Como a bateria deste computador já há muito passou o seu prazo de validade, estou limitado a alguns minutos de trabalho sem estar ligado à corrente. Para terminar este artigo tive de me socorrer da tecnologia antiga que nunca falha: caneta e papel. A minha dúvida era como haveria eu de publicar isto. Fazia um aviãozinho e mandava lá para a tal da internet?

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Ao papel nunca acaba a bateria

Veio a noite e ligámos o gerador. Publique-se!

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “Avenida de Portugal, curioso”

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  1. Parabéns pelo blog, pelo dom da escrita e pela isenção com que olha para Angola. A do passado, a do presente e também a do futuro que hoje se fez nas urnas.
    Também nós, os que estamos longe e que um dia acreditámos ser angolanos e que amamos Angola, queremos Paz. E um futuro justo para todos os Angolanos.
    Obrigada por nos ter deixado ver e sentir Luanda ao longo de todo este dia de eleições.
    Hoje também foi um dia atípico por cá. Choveu “a jorros” todo o santo dia. Mas o insólito que hoje marcou o meu dia quando me dirigia para o local de trabalho, logo pela manhã, foi o assistir à fuga da capoeira de um galo negro. Apenas a crista era vermelha. Desatou a correr pela estrada fora ao ser perseguido por um cão. Não sei se conseguiu escapar. Ainda pensei em parar. É que teria dado uma bela “caçoilada”. Afinal amanhã é Sábado, dia de “tainada” com os amigos.
    Tudo de bom para si!

  2. Com avião ou com ajuda do gerador…o importante é que as notícias têm chegado.

  3. Com tantas falhas e carências, salva-se o bom tempo. Com as assembleias de voto na rua, se as eleições tivessem sido aqui, com a chuva que caiu, ia tudo por água abaixo.
    Achei curiosa a descoberta da placa toponímica, é como se os Angolanos, ainda sentados no passado, se levantassem para escolher um novo nome para o seu futuro. Espero que sejam bem sucedidos e que a esperança que depositaram nas urnas não esmoreça e traga muita luz, que não só a do sol.
    A minha votação, diária, é sempre em ti.
    Aquele abraço.

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