Cascas vazias
Afonso Loureiro
Quando falamos das várias ruínas com que nos cruzamos em Angola, quer sejam casas do tempo colonial, quer sejam traçados de ruas que recordam outrras paragens, ou até mesmo os navios encalhados na Praia de São Tiago ou as locomotivas abandonadas em Catete ou Huambo, na verdade, estamos só a falar de cascas vazias. Tentamos imaginar o conteúdo destes receptáculos de memórias, sabemos que já houve uns anónimos que as fruiram, mas somos incapazes de os sentir.
Catete
De vez em quando recebo comentários às fotografias que publico ou às histórias que conto, que enriquecem a minha experiência de Angola. Passam a dar-me outra perspectiva daquilo que vi e senti. Dão-me outros olhos com os quais posso ver as cascas que se me depararam vazias. Encho-as um pouco, digamos.
Liceu Salvador Correia
Mesmo os edifícios que vão sendo recuperados, são agora marcas do tempo presente e não da altura em que foram construídos. O país mudou demasiado para que o sejam. Não digo que tenha mudado para melhor ou pior. Mudou, apenas.
Cinema Ruacaná, Huambo
Quando escrevi o artigo acerca dos navios enferrujados que foram encalhados na Praia de São Tiago, tratei-os como cascas vazias, dizendo que o seu nome já não interessava. Preocupei-me com a história deles como um todo e não com as histórias vividas em cada um. Que foi feito dos marinheiros que os manobraram e que, durante meses a fio, os chamaram de casa?
Cargueiro Joaquim Kapango, em segundo plano
Afinal, parece que os nomes não eram assim tão irrelevantes. Um dos dois navios que se amparavam na velhice chamou-se Joaquim Kapango, facto que continuaria a não me dizer nada, não fosse ter descoberto histórias vividas a bordo dele, contadas na primeira pessoa.
É engraçado como, a pouco e pouco, vamos conhecendo mais um pedacinho do mundo e colorindo uma imagem com os tons que os outros nos emprestam.
Eu quero aquele comboio, para por no meu quintal, fica um espectaculo! Traz, se faz favor!
Se as “cascas vazias” falassem, teriam muito que contar…
Não há dúvidas que as histórias contadas na primeira pessoa são muito enriquecedoras… esperamos pela próxima.
Os edificios apesar do estado de degradação, transmitem-me uma imagem de um passado de desigualdades, de opulência para muitos, de uma sociedade mais evoluida que o Portugal rural, de mentalidade mais aberta e de espirito alegre, com vontade de viver a vida e gozar os prazeres de Africa.
Ao ver o combóio de Catete, lembrei-me de uma expressão que ouvia desde pequenita e que foi ficando como quem faz nascer um provérbio ou um dizer:
-Parece que estiveste na Canhoca!
A Canhoca era uma das paragens do combóio. Nessa paragem havia um restaurante (não sei se na altura seria digno desse nome, ou mera casa de pasto). O combóio fazia a sua paragem por volta da hora de almoço. Havia que dar de comer àquelas bocas famintas no pequeno espaço de tempo da paragem do combóio. Assim, mal “parecia” que o cliente estava a acabar de comer, retirava-se logo o prato, na mira de outro se sentar no lugar e ser mais um client a conseguir servir.
Foi assim que o meu pai, sempre que alguém levantava a mesa mais a correr dizia:
-Parece que estiveste na Canhoca! (a trabalhar no restaurante, entenda-se)
Há uns anos ouvi dizer que tinham feito um filme? curta metragem? sobre a Canhoca. Se alguma vez ouvir falar nisso dê-nos conta.