Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

10  02 2009

O cheiro do medo

Luanda fica a pouco menos de uma hora do Huambo e todos os dias há várias ligações entre ambas as cidades, efectuadas quer pela companhia estatal, quer por mais algumas companhias aéreas privadas. Desta feita, viajei na TAAG, num Boeing que é incapaz de esconder a idade, nem que seja pelo desenho dos seus motores.

No regresso à capital, com algumas horas de atraso em relação à tabela, ficámos a aguardar a nossa vez de aterrar. Sobre Cacuaco e a foz do Bengo, o 737-200 entrou no carrossel de Luanda e mostrou fábricas, contentores, navios carregados, navios encalhados, ruas castanhas com candongueiros azuis e brancos, camiões cobertos de pó e carros vermelhos, telhados de chapa amontoados e muita, muita gente.

TAAG_737-200
Descolando do Huambo

A nossa vez de aterrar chegou ao fim de algumas voltas. O avião começou a fazer-se à pista, mas seguia demasiado depressa e muito alto. O piloto, sacrificando o conforto dos passageiros em detrimento da sua pressa, corrigiu a altitude e a orientação com duas descidas repentinas em curva, que faziam lembrar poços de ar violentos.

Ninguém contava com esta surpresa, nem mesmo eu, que já experimentei emoções fortes na altura de escolher a pista do 4 de Fevereiro. Seis dezenas de estômagos subiram repentinamente até às respectivas bocas e cobriram os seus donos de suores frios. O casario desorganizado lá em baixo a aproximar-se das janelas em ângulos pouco habituais e a velocidades absurdas faziam imaginar o que seria se…

Futebol
Não queiram interromper o jogo

No curto intervalo entre as duas descidas, a cabine encheu-se com o cheiro acre do medo. Após o segundo mergulho, cheirava intensamente a catinga. Cento e vinte palmas de mãos suadas, sessenta nucas com os cabelos em pé, cento e vinte olhos arregalados. Reflexos condicionados de mamíferos que somos…

O avião acabou por descer mesmo na cabeceira da pista 23, mas continuou a sobrevoá-la até quase meio. Demasiado depressa para aterrar em segurança… aquelas descidas súbitas corrigiram a altitude, mas pioraram a velocidade. Os travões aéreos ficaram esquecidos logo após a chegada ao rádio-farol.

Perto do meio da pista, onde deveria sair para a placa, o avião tocou no asfalto com violência. De imediato se armaram os inversores para o ajudar a parar. Motores antigos em máxima potência, para poupar os travões. Devia ser ao contrário, mas enfim…

A pista desfilava debaixo de nós, bem mais depressa do que qualquer um desejaria, provavelmente até o piloto. Agora sim, travões a fundo. E os inversores também armados. O avião lá parou, quase, quase onde os 747 o fazem. É obra!

Meia-volta no fim da pista. Há que fazer backtrack até à saída da placa. A tal que ficou para trás onde as rodas tocaram no chão. Motores ao máximo, como se fosse para descolar de novo. Cada vez mais depressa, as guaritas ao longo da vedação do aeroporto passavam pelas janelas pequeninas pelas quais os passageiros espreitavam a terra firme que anseavam.

Perto da curva para a placa, os inversores armam outra vez. Motores a fundo durante uma eternidade. A velocidades tão baixas não servem de nada. O jacto não tem pressão suficiente para abrandar o avião. É só para estragar o compressor, fazendo-o aquecer demasiado.

Duas voltinhas pela placa e depois travões a fundo outra vez. O avião parou e a porta abriu-se. Descobri que este piloto, cujo nome sei, mas não digo, é um grande feiticeiro. Pela porta pequena saíram sessenta brancos. No autocarro para o terminal foram retomando as cores dos passageiros que tinham embarcado no Huambo. Na recolha de bagagens já havia pretos, brancos e mestiços outra vez!

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

6 respostas a “O cheiro do medo”

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. O avião não é dele, pode-se partir! É como tudo em Angola…

  2. Cuzinho tufa-tufa!

  3. Só por esta leitura até eu senti o cheiro do meu medo… sem dúvida que emoções fortes não te faltam.

  4. “Pela porta pequena saíram sessenta brancos. No autocarro para o terminal foram retomando as cores dos passageiros que tinham embarcado…..” – HAHAHAHAHA!

  5. Estás a ver, já não tens de pagar para sentir as emoções de um voo acrobático 😛

    um abraço

  6. Relato Fenomenal!!!!!!!! 😉

    Lembrou-me uma viagem HBO-LDA na Air26… 😉

Deixe uma resposta

Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.

« - »