Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

03 2009

Cicatrizes

Quem chega a África traz sempre consigo uma ideia do que irá encontrar, formada por tudo o que ouviu, leu e viu nos programas de vida selvagem. É, geralmente, uma ideia errada. Toda a imensidão que idealiza não chega a encher aquela nesga enfezada de horizonte que nos espreita a cada momento.

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David Attenborough, rói-te de inveja

Os horizontes imensos de Angola marcam indelevelmente todos os que por cá passam. Compreendo agora os sonhos dos retornados, que giram sempre em torno da terra, nunca do trabalho ou das coisas. Dizem sempre que lá deixaram muita coisa, mas não se lembram dos objectos. Recordam os cheiros e os paladares, recordam os montes e as matas, as gentes e os amigos.

A sensação de esmagamento que temos quando contemplamos a vastidão de África deixa uma cicatriz funda. Daquelas cicatrizes que se fazem notar com uma comichão quando muda o tempo.

Mais funda cicatriz deixa a ameaça das minas. Um pouco por todo o lado se vão assinalando zonas minadas ou suspeitas. Os paus vermelhos e brancos a bordejar as estradas ferem-nos a vista e a alma. Os horizontes que contemplamos passam a ser de outro planeta. Terra proibida. Sonhos proibidos.

A sensação de esmagamento da paisagem africana é apagada quando comparada com o sentimento de opressão que as minas trazem. E nem vale a pena pensar que muitas delas nunca serão retiradas, por falta de interesse económico.

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Máquina blindada da desminagem

As operações de desminagem avançam lentamente. O trabalho tem de ser minucioso. Para as obras de reabilitação de infraestruturas, como sejam as linhas de caminho-de-ferro e pontes, é necessário limpar os terrenos antes de se começar a trabalhar. A área desminada é inversamente proporcional à velocidade de avança da obra. Há linhas de combóio que só são seguras até dois metros para cada lado da plataforma… E se o combóio descarrila e é necessário levar máquinas para o local?

Infelizmente, apesar de haver muitos cuidados nas operações de desminagem, nem sempre se levantam todas as armadilhas. De vez em quando lá se ouve o relato de um carro que foi pelos ares numa zona acabada de desminar. Os horizontes acabam de ficar um pouco mais suspeitos…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

7 respostas a “Cicatrizes”

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  1. Como sempre, “breathtaking photos”:)
    contemplar esta foto dos imbondeiros ao por do sol, sem duvidas compensa ter de pensar na triste ideia da desminagem…

  2. Afonso
    Vem mesmo a propósito, as minas de hoje reportaram-me às granadas de há 40 anos….
    E isto para lhe dizer que passou a ter, por meu intermédio, um leitor que não o pode “ler”. Trata-se de um amigo de longa data, que pelos anos 60, fruto de uma granada que o irmão havia trazido para casa, ficou, entre outras mazelas, cego.
    Passei a fazer o “tratamento” dos seus textos, nomeadamente tirando as fotos e fazendo com que, via mail, lhe seja fácil ter acesso ao texto por forma audio.
    As vitimas das guerras andam por ai…
    Bem haja pelas pinceladas que nos deixa espreitar. Falo tb em nome desse meu amigo, o Henrique Portugal.
    São

  3. De facto, um pesadelo para os angolanos. Lembro aqui as Terras do Fim do Mundo, lá bem longe, nos confins do Kuando Kubango. Quando por lá andei, há quase quarenta anos, durante a guerra colonial, não havia ali minas. Dizia-se que o terreno arenoso minimizava o seu efeito mortífero e por isso não as colocavam. Ouço dizer agora que a guerra fratricida após a independência, plantou minas naquelas terras selvagens. Mesmo regadas, não nascem, mas matam populações indefesas que apenas pretendem viver pacatamente o seu dia a dia nas terras que os viram nascer.

  4. O Aerograma nasceu para a família e depois para os amigos. Pelo caminho transmutou-se e fugiu-me das mãos. Passou a escrever-se a si mesmo também para todos os amigos que nunca vi.
    Agora descubro que as suas metamorfoses o levaram ainda mais longe e que também chega a quem já não pode ver os embondeiros. Ainda bem que tenho resistido a publicar artigos só com imagens.

    Bem-haja, São!

  5. A “guerra de cobardes”, à qual já me referi algumas vezes, caracterizou-se por martirizar as populações que não apoiavam o movimento que lá se encontrava. Se não é a favor, deve ser contra!

    Actualmente, grande parte do Leste, incluindo as Terras do Fim do Mundo, está minado. A distância aos centros de decisão, a pobreza dos solos e o desinteresse generalizado perpetuam a sua existência. E há até quem lhes encontre utilidade, porque impedem o cruzamento da fronteira por contrabandistas…

  6. Linda a foto dos imbondeiros.

  7. Trocava tudo o que lá deixei por um simples cafezinho no Polo Norte em Luanda ou na Floresta em Sá da Bandeira ou no Pobre Trabalhador em Silva Porto.

    Mas sem minas!

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