Apartheid de esplanada
Afonso Loureiro
De vez em quando sabe bem poder ir almoçar fora. Não sempre, porque isso acabava por chatear.
Quando o trabalho é fora de Luanda, não há grande escolha. Almoço e jantar são fora. Sempre que possível, fujo dos sítios mais caros. Não é por me cobrarem 50 dólares que a comida vai ser melhor que os pregos da Escurinha, no Dondo, a 200 kz cada.
Estando no Huambo e com algum tempo para ver ementas e perguntar preços, acabei por ficar numa simpática esplanada, virada para o jardim central da cidade.
A esplanada era mesmo agradável. Dentro do restaurante, só os empregados. Cá fora, mais seis brancos almoçavam.
Os preços eram bem mais baixos que os de Luanda. Quase diria que civilizados. Uma refeição completa e muito bem servida ficou por menos de 2000 Kz. Para os padrões de Portugal é caro, mas para estrangeiro em Angola, uma pechincha.
Para além do mais, o serviço era bestialmente rápido. Contava com uma meia-hora ou mais até ser servido, mas nem tive tempo de abrir o caderninho onde vou deixando umas notas para o Aerograma. A comida chegou num instante.
Enquanto apreciava o panado com arroz de legumes, pus-me a pensar na segregação que se fazia sentir na esplanada. Sete brancos à sombra, almoçando, enquanto dezenas de negros passavam no passeio e deitavam o rabinho do olho às mesas. Não com cobiça, ou com inveja, mas com pesar, talvez.
De vez em quando passava um grupo de miúdos com bujigangas para vender. Não diziam nada. Paravam apenas em frente às mesas e esperavam um pouco. Não agitavam a mercadoria, não olhavam para ninguém em especial. Depois seguiam caminho.
Habituado aos preços de Luanda, estava a gastar uma quantia irrisória. Para quem passava era uma pequena fortuna. Não duvido que haja negros que tenham posses para ali comer mas, se bem começo a conhecer esta terra, devem preferir sítios mais caros, onde tudo se paga em múltiplos de 100 dólares.
Pretos ao sol, suando. Brancos à sombra, comendo. Apartheid à refeição, limitado à esplanada…
O que pagam 2000 Kz no Huambo? 100 Mangas. 200 bananas-macaco. 400 pastilhas elásticas. 30 latas de cerveja. Quanta mercadoria despacha a vendedora? Algumas dúzias de bananas e mangas. Uma dezena de pastilhas ou uma grade de cerveja. E quanto disso é lucro? 10%? 30%?
Um quase-nada de dinheiro faz toda a diferença. Irritei-me com os brancos barulhentos e cheios de soberba, que olham os pretos como pretos. Se calhar também sou assim. Espero olhar para eles mais vezes como gente do que como pretos. Quero esquecer que somos de cores diferentes, mas sem disfarçar que somos diferentes, cada um com a sua bagagem cultural.
Senti-me mal na esplanada. Senti-me na pele do branco-explorador esterotipado. Quero acreditar que estou cá por outros motivos. Quero acreditar que deixarei o país mais desenvolvido e um monte de amigos de todas as cores.
Paguei a conta. Fui à procura de gente com quem conversar. Encontrei-os a jogar Kiela.
Entretanto, já voltei a almoçar mais vezes naquele restaurante. Não fiquei mais na esplanada. Mas encaro a porta, resistindo à tentação de não encarar o receio de ter medo de olhar lá para fora e sentir vergonha da segregação que um pouco de dinheiro traz.
A grande divisão não é ser-se branco ou preto. A divisão é entre pobres e, neste caso, remediados. Suponho que os ricos me encarem da mesma maneira. Só que aqui, em Angola, é muito mais difícil encontrar brancos pobres que pretos pobres…
joao quando andava na escola la pros lados dos bailundos era o unico branco no meio de 50 pretos … na hora da merenda eu nao comia porque os outros nao a tinhao quando regreava a casa o amigo que na ocasiao me acompanhava a casa dava-ha nao mudei o mundo mas senti-me melhor
kandados
De volta o Henrique mandou-me o seguinte “aerograma”:
2009/3/8 h.portugal
Viva, São.
Gostei, outra vez. Àcerca do almoço na esplanada, deixa-me dizer uma coisa: há pelo menos 35 anos, tive a oportunidade de dizer o seguinte a um estagiário do Centro de Reabilitação N. Sra. dos Anjos, que vinha com a tanga da exploração dos pretos, por serem pretos. Afirmei que, na verdade, a exploração resultante da cor não tinha tanto a ver com a cor da pele, mas sim e principalmente, com a cor das unidades monetárias representadas pelas notas em circulação. Nesse tempo, o Afonso ainda não seria nascido. Contudo, agora, conseguiu perceber o que os portugas mentalmente cegos nunca quiseram ver.
Beijos, tantos muitos.
Henrique
Mais um belo artigo.A questão é que de facto não deveria sentir-se mal porque os negros que se calhar viu ao sol seriam gente rural com poucos rendimentos.Sou negro e com certeza que haverão negros no huambo com posses para comer numa esplanada,mas não os viu porque na maior parte dos casos vão faze-lo a casa(conhecendo os hábitos dos naturais é assim que se passa).O pessoal vai sempre almoçar a casa porque é proximo o suficiente para sair do trabalho e voltar por volta das 14 horas.
Um abraço
Senti-me mal porque senti haver uma imensa desigualdade e eu era absolutamente impotente para a combater…
Encontrei o teu blog por acaso, e nao consegui resistir; tive mesmo que comentar.
Infelizmente muitas das vezes nos pretos angolanos temos uma tendencia involuntaria a nos sentirmos inferiores ao branco (angolano ou nao), talvez isso seja fruto da assimilacao do colonialismo que nos tivemos.
Se o branco aproximar-se de nos e nos mostrar que ele acredita que somos iguais certamente iremos todos um dia almocar a mesma sombra.
Parabens pelo blog, sao poucos os blogs angolanos (talvez to o consideres um blog portugues) com tanto conteudo.
Considero o Aerograma um blog angolano escrito por um português. Começa a não haver fronteiras claras…