Pára. Arranca.
Afonso Loureiro
Sete e meia. Um zumbido electrónico irritante. Acorda. Adormece. Novo zumbido irritante. Acorda. Levanta-te. Procura os chinelos. Encontra um. Encontra o outro. Esfrega os olhos. Casa-de-banho. Espelho. Mira-o de volta. Lava a cara. Atrás da orelhas também. Não te barbeies. Amanhã. Talvez. Cozinha. Caneca com um fundo de água. Filtrada. Café. Ou imitação. Em pó. Duas colheres. Das de chá. Açúcar. Só uma. Leite. Em pó. Marca nova. Duas colheres. Das de sopa. Mistura. Papa grossa. Castanho-escuro. Mais água. Continua a mexer. Lambe a colher. Pousa-a. No prato. Caneca no micro-ondas. Um minuto. PLIM. Caneca no prato. Ao lado da colher. Algumas bolachas. No prato. Ao lado da colher. Ao lado da caneca. Casa-de-jantar. Golo no leite. Dentada na bolacha. Repete até ao fim. Cozinha. Lava a caneca. Lava a colher. Lava o prato. Casa-de-banho. Escova-de-dentes. Molha-a. Espreme o tubo de dentífrico. Ainda tem um bocadinho. Escova os dentes. Bochecha. Seca-te. Quarto. Calças. Meias. Sapatos. T-shirt. Das que não precisam de ferro.
Ferraduras
Oito. Fecha a porta. Degraus. Duas dezenas. Para baixo. Bom dia. Ok, sim, sim, obrigado. Onde está o carro? Ali. Chave na porta. Roda-a. Destranca-se. Entra. Chave na ignição. Fecha a porta. Tranca a porta. Roda-a. Está a trabalhar. Volante para a esquerda. Marcha à ré. Trinta centímetros. Volante para a direita. Avança. Quarenta centímetros. Volante para a esquerda. Marcha à ré. Quarenta centímetros. Volante para a direita. Avança. Já sai. Espera que te deixem entrar. Não deixam. Força. Não deixam. Um candongueiro muda de faixa. Fica a meio. Tranca todos os que estão atrás. Entra. Buzinadela furiosa.
Oito e dez. Solta o pedal. Devagar. Avança. Mais três metros. Pisa dois pedais. Pára. Semáforo. Espera. Verde. Ninguém anda. Amarelo. Ninguém anda. Vermelho. O da frente avança. Meio metro. Verde. Mais meio metro. Já cabe. Vira à esquerda. Desce a rua. Vermelho. Tudo parado. Verde. Tudo parado. Amarelo. Tudo parado. A/C. Botão. Luz verde. Ar fresco. No vidro. E nos pés. Vermelho. Avançam todos. Dez metros. Talvez menos. Talvez mais. Repete até ao cruzamento. Vermelho. Polícia. Mão no bolso. Bloco de multas na outra. Passeia. Para lá. Para cá. Espreita os condutores. Abanica-se. Com o bloco. Chega outro. O bloco troca de mãos. Duas mãos nos bolsos. Afasta-se. Verde. Ninguém anda. Cruzamento fechado. Abanica-se. Olha para as horas. Afasta-se. Buzinas. Muitas. Insistentes. Amarelo. O cruzamento abre. Dois carros avançam. Vermelho. O polícia volta. Ninguém avança. As motas não contam. O cruzamento volta a fechar. Verde. Ninguém avança. Ninguém pode. Toque. Discussão. Dois condutores. Saem dos carros. Zaragata. Junta-se gente. Multidão. Berros. Gritos. Buzinas. Sirenes. O polícia desaparece. O bloco de multas vai com ele.
Oito e quarenta. Há acordo. Um condutor paga o arranjo do seu carro. O outro faz o mesmo. Mas do seu. Buzinas. Cada um entra no seu. Toyota Corolla. Vermelho. Azul. Amassados. Muito. Arrancam. O cruzamento abre. Lei da selva. Volta a fechar. Buzinas. Berros. Verde. Amarelo. Vermelho. Fura. Fuça. Buzina. Ponto de embraiagem. Colado à traseira do da frente. Toyota Corolla. Vermelho. Mais ou menos. Amassado. Muito. Avenida. Três filas. Para cada lado. Cabem duas.
Oito e cinquenta. Segunda velocidade engrenada. Túnel. Semáforo. Passadeira. Candongueiro. Azul. E branco. Atravessa-se. Muda de ideias. Pára. Arranca. Desiste. Éroporto. Éroporto. Jacaré. Morreu. Assassinado. Afogado. Comia criancinhas.
Nove. Desce buraco. Sobe buraco. Desce cratera. Sobre cratera. Salta vala. Acerta em pedra. Pó. Desvia-te. Caixa de visita. Sem tampa. Armadilha. Cabe lá uma roda. Toda. O de trás já sabe. Ganhou experiência. Foge. Para a berma. Lama. Cinzenta. Fede. Foge. Do buraco. Acerta na pedra. Outra vez. Pisca. Pára. Pó. Vermelho. Cancela. Arranca. Pára. Desliga. Sai. Vai trabalhar.
Cinco. Abre a porta. Entra. Fecha a porta. Liga o carro. A/C. Botão. Luz verde. Ar fresco. Gélido. Na cara. Nos pés. No vidro. Na cara. Arranca. Cancela. Boa tarde. Até amanhã. Sim, sim. Obrigado. Desce buraco. Sobe buraco. Acerta na pedra. Acerta na lama. Vendedor de tapetes. Não quero. Vendedor de pilhas. Não quero. Buraco. Lama. Vendedor de desodorizantes. Pinheirinhos. Com a bandeira americana. Não quero. Irra. Buraco. Vala. Lama. Vendedor de cabides. Não quero. Carro avariado. Foge. Berma. Lama. Reboque no local. Novidade. Lama. Vala. Entulho. Tapa o buraco. Vendedora de bananas. Corre. Ao lado do cliente. Regateiam. As bananas entram. E saem. Tornam a entrar. Sai uma nota. Buraco. Pedregulho. Lama. Cada vez mais. Buraco. Buraco. Buracão. Asfalto. Buraco. Cratera. Pó. Buraco. Foge. Para o buraco. O mais pequeno. O mais fundo. Crianças. Correm. No meio da estrada. Quatro piscas. Braços. De fora das janelas. Arranca. Kinguilas. Na berma. Agitam notas. Muitas. E saldo. Para os telefones. Aliás, terminais. Buraco. Candongueiro. Lama.
Cinco e meia. Buzinadelas. Verde. Cruzamento fechado. Polícia. Mãos nos bolsos. Olha para as botas. Admira o seu brilho. Buzinadelas. Uma mota sobe a rua. Em contra-mão. Depressa. Cada vez mais depressa. O polícia dá dois passos atrás. A mota passa. Sobe o passeio. Continua. Tira as mãos dos bolsos. Limpa as unhas. Amarelo. Vermelho. Verde. Cruzamento fechado. Ainda. Buzinadelas. Aconchego. Avança um. Fura. Passa. Vão passando. Mais um pouco e já cabe. Unhas limpas. Mãos nos bolsos. Mira as botas. Brilhantes. Bonitas. Adeus.
Cinco e quarenta. Dá a volta ao quarteirão. Procura um buraco. Estaciona. Onde couber. É pequeno. Felizmente. Cá está ele. Entra de frente. Sobe o passeio. Com uma roda. Da frente. Desce. Está bom. Desliga. Abre a porta. Sai. Fecha a porta. Tranca-a. Dobra o espelho. Levanta o puxador. Trancada. Confirmado. Meu kamba, meu kamba, gasosa para o puto. Tem juízo. Homem feito. Não, não há. Eu guardo o carro. Não precisa. Depois aparece estragado. Depois sei que foste tu. Desiste.
Cinco e cinquenta. Roda a chave. Estalidos. Abre a porta. Entra. Fecha-a. Cozinha. gaveta. Colher. Frigorífico. Iogurte. Banana. Boa escolha. Senta-te. Tampa. Levanta-a. Lambe-a. Coisa de pobre. Raspa o fundo do copo. Acabou. CLIC. CLAC. TLAC. Tudo às escuras. Foi-se. Outra vez. Não há gasóleo. Outra vez. Há-de voltar. Outra vez.
é, como dizem os nossos amigos brasileiros, não é mole não…
E agora parece que, com os recentes acordos, ainda vem para cá mais um montão de gente, né?
Como vai ficar o nosso trânsito, já de si infernal?? Como vamos caber todos aqui? Acho melhor fugirmos para as províncias…eheheh
gosto muito do seu blog. Parabéns.
Um abraço angolano
Fátima
Tenho muito orgulho em ti!
Sei que as dificildades que enfrentas diariamente tem um único objectivo mas estamos perto de o atingir.
AMO-TE!
Esta pára, arranca, fez-me lembrar um poema de Gedeão:
“Anda, Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada (…)
anda, ciranda, desce o passeio, desce a calçada, chega à oficina na hora aprazada, puxa que puxa, larga que larga…”
Onde quer que se esteja, haverá sempre uma calçada de carriche à nossa espera, é a vida!… sobe, que sobe, puxa que puxa, larga que larga…
Não posso deixar de lhe agradecer este aerograma: diz-me sobre Luanda e as pessoas o que os cronistas “esquecem”. Os meus cumprimentos.Elmiro
A ler este teu post quase que sentia os pedais do carro debaixo dos pés..
Parece uma travessia da ponte 25 de Abril quando os “veraneantes” vêm aqui ao deserto 🙂
Acredita que condutores de fim-de-semana na fila da ponte são iguais aos de Luanda 😉
grande abraço
Todo dia. Todo dia. Todo dia.
Às vezes é pior.
Angustiante.