Holocausto
Afonso Loureiro
Há livros que se lêem com prazer ou por prazer. Mas há outros que necessitam de uma grande dose de masoquismo para se chegar ao fim.
Não falo dos que são maus livros, que esses, nem vale a pena começar. Falo daqueles livros que, a cada página, abalam as nossas convicções morais, que nos oprimem e fazem sentir impotentes.
O livro Holocausto em Angola é deste tipo. Cada página é mais dolorosa que a anterior, mas não podemos deixar de o ler. Crimes bárbaros contra pessoas e povos inteiros são enquadrados na anormalidade da época. Nomes, datas, testemunhos e suplícios preenchem páginas a fio. Memórias de desaparecidos são recordadas.
O mais chocante é saber que carrascos, torcionários, traidores e mandantes são hoje chamados de heróis em Portugal, Angola, Cuba…
A minha estrutura moral levou um safanão desgraçado. Perdi a inocência. Nunca mais serei o mesmo.
Nem sempre é preciso ler um livro tão pesado como esse para nos acontecer isso. A perca da inocência é tão mais drástica quanto permitirmos que as nossas vivências a afoguem. Há que mandarmos um bocadinho em nós e não nos deixarmos embrutecer. Sem inocência perdemos o fio condutor que nos conduz sempre à capacidade de acreditar que mais que fundear há que erguer velas para reconstruir em nós e no mundo mais vontade e coragem para saborear “vida”. Já estou como Miguel Torga, ainda que com algum lirismo, mas estamos feitos se largamos mão da criança que há em nós.
Inocência
Vou aqui como um anjo, e carregado
De crimes!
Com asas de poeta voa-se no céu…
De tudo me redimes,
Penitência
De ser artista!
Nada sei,
Nada valho,
Nada faço,
E abre-se em mim a força deste abraço
Que abarca o mundo!
Tudo amo, admiro e compreendo.
Sou como um sol fecundo
Que adoça e doira, tendo
Calor apenas.
Puro,
Divino
E humano como os outros meus irmãos,
Caminho nesta ingénua confiança
De criança
Que faz milagres a bater as mãos.
Miguel Torga, in ‘Penas do Purgatório’
Caro Afonso,
Abandonei Luanda em agosto de 1977. Desertei, se assim me posso expressar, desiludido, envergonhado, acossado. Ainda hoje sinto vergonha de ter tomado por pessoas de bem alguns dos bandidos retratados no “Holocausto em Angola”. Conheci e convivi também com mulheres e homens bons, alguns deles protagonistas e vítimas no livro. É terrível o que lhes aconteceu, o que puderam fazer-lhes. Foi o genocídio às ordens dos chefes poderosos e de torcionários seus ajudantes.
Posso imaginar o abanão que o relato de Américo Cardoso Botelho provocou na sua moral, mas é bom que mantenha a integridade e a sanidade mental. Ainda temos muitos livros para ler, dentre os que ainda não foram escritos. Desculpe a banalidade.
Queira aceitar os meus cumprimentos.
elmiro