Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

26  03 2009

Uma chuvinha

O dia amanheceu cinzento e quente, como a imitação de um dia de cacimbo, mas mais escuro. O trânsito do costume fez perceber que a ameaça de chuva ainda não tinha sido cumprida. Ninguém acredita que uns minutos de chuva possam paralisar uma capital, mas tudo é possível é Luanda.

Perto do meio-dia, gotas grossas agrediam as vidraças e abafavam o ruído da vida lá fora. As conversas habituais no parapeito ficaram mudas, com os intervenientes a procurar abrigo e até mesmo os lagartos que costumam percorrer as paredes se deixaram ficar nas árvores mais frondosas, esperando que passasse.

Quem vem da rua reclama da molha que apanhou. Vou até à porta ver chover. Suspiro por não poder ir correr para a chuva. Há trabalho para fazer e todos iriam pensar que o pula tinha pirado de vez. O ar está quente e pastoso. Estendo a mão. A água está igualmente quente. Na verdade, bem mais quente do que aquela com que costumo tomar banho.

Ao fim do dia, e depois de mais umas chuvadas, pensei que tinha sido má ideia pedir para lavar o carro. Mas o jardineiro tinha aproveitado a última aberta para lhe passar um pano por cima. Reparei nos baldes que tinha deixado debaixo das caleiras do edifício, colocados estrategicamente para apanhar a água que caía lá de cima e, ao mesmo tempo, obrigar a um slalom quem queria sair.

O trânsito no regresso a casa estava um pouco mais lento que o normal. A chuva miudinha que me fazia ligar as escovas a cada par de minutos não parecia estar a aumentar a fluidez. Nas bairros populares do Prenda, Cassenga e Rocha Pinto via-se muita gente a baldear água dos pátios e das casas.

Miúdos só de cuecas e cabeça rapada, baldeiam com ar resignado a água lamacenta em que estão enfiados até aos joelhos. Cuecas castanhas em pele castanha sobre a água castanha. Gotas de água e suor escorrem-lhes pelo corpo abaixo, até se juntarem ao charco onde lhes desaparecem as pernas e os pés. Por um momento julgamos que surgem da água e que se tentam baldear a si mesmos para fora da miséria que é ver a casa inundada a cada chuvada.

Os buracos da estrada estão todos cheios de lama. É impossível adivinhar quais são os fundos. Temos de nos socorrer da memória para tentar identificar os perigosos, mesmo sabendo que o mapa muda a cada hora.

Já no centro da cidade, os peões caminham apressados, ultrapassando os polícias de trânsito que hoje ostentam os seus impermeáveis imaculadamente brancos. A habitual protecção branca que usam no chapéu cresceu e agora cobre-os até aos pés. O mundo todo parece passar por nós em ritmo acelerado. Demora-se cerca de meia-hora para percorrer três quarteirões. Grande parte do tempo estive de motor desligado, mas voltei a ficar com a sensação de que fui o único.

Nas paragens habituais, as pessoas esperam, resignadas e cabisbaixas, pelo candongueiro que os há-de levar a casa. A ausência de abrigos é encarada como mais uma contrariedade da vida e quem quer ir cedo para casa tem de se sujeitar à chuva. Alguns improvisam um guarda-chuva com um saco de plástico enfiado na cabeça ou segurando um jornal dobrado ao meio. O segundo abrigo dura até que as letras se começam a desfazer e a escorrer para o cabelo do dono, como uma espécie de caspa alfabetizada.

Poucos minutos depois de chegar a casa, a chuvada anunciada ao longo de todo o dia desaba finalmente. Fá-lo com intensidade suficiente para interromper o sinal de televisão que chega à nossa antena. O trânsito abranda ainda mais e agora só se conseguem distinguir escovas a esfregar furiosamente os pára-brisas. Assim consegue-se ver melhor o carro parado à frente.

A água que escorre pelas valetas evita as sarjetas entupidas e continua pela rua abaixo. Acaba por transbordar e ir enchendo a rua até que tudo pareça um rio. Passada a hora de ponta, os poucos carros que circulam fazem-no deixando uma esteira. Parece que estamos a assistir a uma regata. Não fosse a chuva que ainda caía e os cobradores dos candongueiros seguiriam, como de costume, de rabo à janela, imitando os velejadores pendurados de fora do barco numa curva apertada.

Mais um pouco e alguns relâmpagos e trovões anunciaram o fim das hostilidades. A água que escorre das partes altas da cidade ou que é baldeada das casas continua a correr pela rua, não mostrando sinais de abrandamento. Parece que continua a chover.

Horas depois da chuva ter parado, as valetas ainda têm pequenos regatos a serpenteam os montes de pedras, lama e areia que foram sendo arrastados. Nos bairros mais pobres, a chuva arrastou mais do que lama. Todo o lixo que se acumulava nos cantos foi arrastado para as ruas e casas. Amanhã a cidade vai estar parada por causa da lama que deixou muitas ruas intransitáveis. Depois de amanhã vai continuar parada por causa do atraso na limpeza. Talvez para o fim-de-semana os cantoneiros consigam domar, finalmente, a lama e a areia e tudo volte à normalidade possível.

dondo13
Regos e valas abertos nas estradas

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “Uma chuvinha”

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  1. Como costumo dizer quando circulamos nos “riachos viários” de Luanda, «follow the leader». Se o carro da frente não enfiou a roda num buraco mais fundo, esse é o caminho ideal.

    A vala na berma da descida para a Samba está 3 ou 4 vezes mais larga graças à chuvada do último Sábado…

    E o povo vive resignado com estas ruas e com as casas donde têm de tirar baldes de água.

    Mas, também se formos a ver bem, o lixo que se acumulava nos cantos e que foi arrastado pela chuva, foi lá parar pela mão de quem?… :/

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