Mordaça do Futuro
Afonso Loureiro
A História das cidades não está nos monumentos erigidos pelos vários regimes nem nas torres de vidro das empresas ou nos negócios que mudam de nome todas as semanas. Está nas paredes das casas que absorveram um pouco das pessoas que lá viveram. Está nas lojas que, muito depois de terem desaparecido, ainda dão nomes às ruas. Está nos largos e praças que surgiram naturalmente, sem projecto definido.
Pedaço de História
Luanda não é diferente das demais cidades do mundo. A sua História vive escondida nas grossas paredes de alvenaria de pedra que agora se derrubam, dando lugar a uma qualquer construção desproporcionada e desenquadrada. Num pequeno passeio conseguimos ter uns relances de épocas distintas, quer seja no desenho de uma janela, no que resta de um letreiro ou num degrau muito gasto.
Memória da cidade
Ao fim de algum tempo, começamos a desconfiar que poderemos ser as últimas testemunhas destas marcas da História de Luanda, que vão desaparecendo a um ritmo surpreendente, atropeladas por máquinas de rastos e afogadas em betão. Desconfiamos também que somos os únicos a preocupar-se com isso. Se a maioria dos angolanos nem pensa duas vezes no que acontece à sua Memória colectiva, porque haverá de ser um estrangeiro, sem nenhuma ligação especial a esta terra, a sentir-se angustiado?
Marca do passado
Algumas semanas sem passar em determinada rua e quase acreditamos que nos enganámos. Temos de escolher novos pontos de referência, que os antigos são agora lotes vazios.
Aqui nascerá uma torre
Não se trata de saudosismo do tempo colonial, até porque nasci depois da independência angolana e França absorveu quase todos os emigrantes da família. Trata-se mais de incredulidade ao ver séculos da História de um país serem arrasados porque alguém viu lucro fácil. Ver o que acontece ao centro de Luanda faz-me compreender o que aconteceu a Queluz, onde cresci.
Queluz era uma pacata povoação, com algumas centenas de villas espalhadas de forma harmoniosa em frente ao Palácio. A dada altura, entendeu-se que se devia fazer de Queluz uma terra moderna, com edifícios altos. O lucro fácil fez arrasar as pequenas vivendas e construir caixotes todos iguais até ao limite do terreno. Parou-se quando Queluz desapareceu. Tornou-se uma terra feia, com ruas demasiado estreitas e desagradáveis. Hoje em dia resta meia-dúzia de casas da Queluz antiga, quase todas em ruína. O resto da cidade é incaracterístico, sem Memória, sem identidade. Luanda segue-lhe as pisadas.
Quase julgamos que progresso é sinónimo de esquecimento. Resignamo-mos ao ver paredes cheias de segredos desfazer-se em pó. Procuramos não pensar nas histórias que contariam, se falassem. Parece que o Futuro procura amordaçar, a todo o custo e à força de escavadora e martelo pneumático, as histórias do Passado. Vergonha, talvez?
Meu caro amigo
Subscrevo tudo o que diz. E não é só por Luanda, que conheci como uma cidade cosmopolita que nunca vi como cidade colonial.
Tenho a certeza que é exactamente por aquilo que refere sobre o exemplo de Queluz, que lamento o que parece estar a acontecer com Luanda.
Apenas recordo que a beleza de muitas cidades da Europa central, está exactamente na preservação do seu núcleo histórico. Houve o cuidado de levar a novel floresta de cimento para as periferias.
Veja-se, por oposição, o exemplo da cidade de Praga ou da pequena Bruges.
Um encanto.
Mas, se calhar, eu é que sou romântico.
Pois é amigo Afonso
Povo que apaga a sua memória, é povo que se suicida.
Só espero é que mais tarde não venham acusar os tugas de terem contribuido para esse suicidio, o tempo o dirá.
Abraço
Quando fala de Queluz, lembra-me a minha cidade natal, o Porto. O Porto é uma cidade recheada de contrastes. Ora temos a parte historica constituida por ruas estreitas em que o sol raramente entra, e muitas vezes com um cheiro suspeito, casas com azulejos que remontam a outros tempos, e alguns edificos com a fachada antiga. E depois, temos a parte nova, um monte de construções de vidro e de betão, avenidas que outrora eram bonitas e com espaços verdes, agora são avenidas cinzentas e estreitas que destooam sob a beleza rara do Porto.
Zenith! A minha primeira casa em Luanda era na rua desse prédio.
Tudo muda.
A cidade que conheci está a desaparecer a um ritmo impressionante.