A guerra das zungueiras
Afonso Loureiro
Não percebo bem as políticas micro-económicas de Angola. Por um lado, o Estado queixa-se que as trocas informais têm um peso demasiado grande na economia do país. Não fossem o petróleo e os diamantes, a mossa seria bem maior.
Na verdade, apesar de tanta preocupação oficial, ninguém liga ao que as zungueiras vendem ou deixam de vender. É certo que se publicam regulamentos estipulando isto e aquilo, mas só são aplicados de vez em quando, quase sempre justificados pelas necessidade de alguns fiscais colmatarem os seus rendimentos pessoais.
Curioso, curioso é que, por um lado, tenta-se combater os lavadores de carros selvagens, mas, ao abrigo dos programas de fomento do auto-emprego, são distribuídos carrinhos para lavar carros. Continua a ser proibido lavar o carro na rua. Continua a ser economia informal, mas o carrinho indica que é um profissional do ramo. A polícia fecha os olhos. A sério que não percebo.
Os rapazes que vendem gasosas e garrafas de água de dentro de um saco de plástico fundo, cheio de gelo, estão sempre de olho nos polícias, não vão eles começar a confiscar a mercadoria. Ao seu lado, outros rapazes empurram um carrinho em forma de lata de refrigerante, cheio de gasosas e águas. Vendem o mesmo produto, ao mesmo preço e nas mesmas condições. A polícia incomoda-os menos. A sério que não percebo.
As zungueiras percorrem Luanda com a loja à cabeça, juntando-se nas encruzilhadas mais importantes, os verdadeiros centros comerciais da cidade. Enquanto vendem, espreitam por cima do ombro, não venha lá um combóio, com polícias de bastão em punho, multando e confiscando. Ao mínimo sinal de confusão, os alguidares sobem à cabeça e a loja ganha, literalmente, pernas.
Lá para os lados do São Paulo, verdadeiro centro económico da cidade, no meio do pó e dos montes de terra das obras, o Verão trouxe também lama, muita lama. Lama fina, escorregadia e peganhenta, que suja tudo e não há maneira de sair da roupa e da pele. Nas poucas zonas secas ou menos húmidas, as zungueiras amontoam-se, deixando pouco espaço para as mercadorias e para os clientes passarem. Quando vêm os fiscais, não há maneira de sair depressa. As zungueiras viram-se encurraladas e a polícia aproveitou esta desvantagem, tornando mais frequentes as operações.
Desconfio fortemente que algumas mulheres andaram a ler a Arte da Guerra. Fizeram das suas fraquezas forças e usaram o terreno para vencer o adversário. Ao primeiro sinal de pânico causado pelo combóio, enfiam os pés em sacos de plástico que amarram às pernas, colocam o alguidar à cabeça e entram, confiantes, no lamaçal. Avançam alguns metros em equilíbrio precário, afundando um pouco a cada passo, até terem lama pelos joelhos.
Ficam a salvo dos polícias, que não querem sujar a farda. Atiram lama e pedras aos que tentam alcançar uma mulher mais próxima da zona seca. Gera-se um impasse ruidoso, com gritos e insultos de parte a parte. Os polícias ameaçam bater, elas acusam-nos de hipocrisia porque as suas esposas também zungam.
A situação andou muito tensa durante umas semanas. Um polícia, frustrado com a guerra da lama, desferiu uma bastonada na nuca de uma mulher e matou-a. Ficou estendida na lama, com o filho às costas e o alguidar tombado. Parece que os ânimos acalmaram um pouco, porque deixou de se ouvir falar de rusgas para aqueles lados.
Que estranho país é este, onde se paga com a vida pelo crime de fuga ao fisco ou ofensa à autoridade…
Que morte tão cruel…
Não ha respeito por ninguém..esses gajos são uns animais!
A cara enfiada na lama, o filho às costas, o alguidar virado. A imagem é muito forte, deprimente. Que vida é essa? Que morte é essa?
Nem sempre as histórias tem um final feliz como esta.
Triste pensar que se trabalhou para sustentar uma familia e tudo acaba assim…