O abraço das zungueiras
Afonso Loureiro
Nos dias que se seguem às chuvadas ou nas ruas onde os esgotos correm a céu aberto, as pessoas enfrentam um labirinto de lama escura sempre que saem de casa.
Fora das artérias principais, onde não há passeios e asfalto é um sonho distante, abrem-se covas fundas, ocupando toda a largura da rua, cheias de água e lama, com muito lixo à mistura. Os condutores afundam devagarinho as suas jantes cromadas na lama, temendo encontrar um buraco mais profundo ou um qualquer obstáculo escondido. Vão subindo e descendo, num carrossel lento até à esquina seguinte. Cada um presta atenção ao carro da frente ou socorre-se da memória dos dias secos para adivinhar onde deve apontar. Na rua seguinte será igual.
Por vezes, a memória falha ou o risco foi mal calculado. O carro atola ou cai num buraco demasiado fundo. Costuma acontecer aos candongueiros…
Arriscou demasiado
Os peões circulam junto aos muros, onde a rua é um pouco mais alta. Fazem sinais aos carros para circular mais devagar e não atirar água para todo o lado. De chinelos de enfiar no dedo ou sapatinhos rasos, saltitam de um lado para o outro, por vezes de pedra em pedra. Nos locais mais apertados, os muros servem de corrimão e os postes para descansar.
Uma coisa impressionante é que, no meio de tanta lama, poucas são as pessoas que têm a roupa suja. Mesmo quem anda com as bainhas a roçar o tacão do sapato, consegue tê-las imaculadas. Tenho de aprender a técnica.
Estes passeios improvisados, que contornam as poças fundas, costumam ser estreitos. Quase sempre passa só uma pessoa e os cruzamentos são feitos à vez, nos locais mais largos. Os mais complicados são os das zungueiras, que andam com a carga à cabeça, espreitando onde pisam sem inclinar o pescoço. Pousar o alguidar está fora de questão e não há espaço para passarem duas. A solução, como seria de esperar de gente tão desenrascada, é engenhosa. Avançam até estarem frente-a-frente e depois, num semi-abraço, equilibram-se mutuamente enquanto inclinam o corpo para trás e trocam de posições.
Assisto a esta cena e quase adivinho, pelo sorriso de ambas, que o abraço também foi agradecimento…
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