Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

19  07 2009

Inevitável, mas educado

Num daqueles exasperantes engarrafamentos da Mutamba, que quase parecem um carrossel avariado em torno do Ministério das Finanças, aconteceu o que já sabia ser inevitável. O local foi um pouco mais insuspeito do que alguma vez sonhei, mas, no dia em que baixamos a guarda, acontece.

De boné e óculos escuros, aproximou-se da janela. Fez sinal para baixar o vidro com uma semi-vénia. Sem me aperceber disso, engatei a primeira. Baixei o vidro três dedos.

Tinha o sotaque “lá da tuga” com que os restantes angolanos estigam e, muito polidamente, pediu desculpa por incomodar. Começou por explicar que era militar e tinha consigo o cartão de identificação de pessoal para o provar, bem como a arma de serviço. Posto isto, não me queria fazer mal, mas estava enrascado.

Na Mutamba, como um polícia a cada esquina, mesmo que tivesse a arma consigo, seria um pouco imprudente exibi-la. Por estas bandas, a polícia ainda tem o hábito de fazer as perguntas depois.

Medi a distância ao carro da frente. Em caso de necessidade, soltava a embraiagem e um angolano muito irado saíria para ver os estragos no pára-choques, fazendo o assaltante sentir-se a mais.

Como eu demorei muito a responder-lhe, achou por bem justificar a sua necessidade de dinheiro. Tinha a mulher doente. E a filha também. Mil Kwanzas chegavam. Pensei cá para mim «um ladrão a sério não dá justificações, exige e acabou-se». Não fosse eu ser estúpido, explicou melhor:

«Não te quero fazer mal, mas isto é um assalto. O que vais fazer?».

«Bom, se me assaltas, tenho de chamar a polícia.»

«Mas enquanto a polícia não chega, pode acontecer muita coisa…»

O tom educado manteve-se, bem como a espécie de semi-vénia a cada exigência.

«Pois é. Temos de ver como isto corre…»

Um silêncio desconfortável instalou-se naquela conversa de fresta de janela. O assalto rápido estava a demorar demasiado tempo.

Tenho por hábito guardar as notas pequenas dos trocos no cinzeiro do carro. Dão jeito para as compras na rua e não preciso de andar a tirar a carteira do bolso. Tirei um molho grande dessas notas e disse-lhe que lhas podia dar. Ao ver tanta nota azul e vermelha, reclamou que era pouco. «Procura na carteira, eu sei que me vais ajudar!». Tirar a carteira era a última coisa que faria.

Pus-lhe as notas na ponta dos dedos e repeti «Se quiseres, levas isto, que é o melhor que tenho». Recusou «Não, isso é pouco. Vê na carteira. Dois ou três paus chegam!». Voltei a guardar as notas. Fechei o cinzeiro e repeti «Este é o dinheiro que tenho. Se não o queres, não há problema. Assim não posso ser teu amigo.» Como a minha mão passava pela fresta, pu-la do lado de fora a apertei a dele, em jeito de despedida. Os carros mais à frente avançaram uns metros.

«Pronto, pode ser.»

Voltei a tirar o molho de notas. Dei-lhas e avancei. Ele afastou-se, cabisbaixo, a contar cinquenta Kwanzas em notas de cinco. No bolso esquerdo levava algo pesado, talvez uma pedra. As coisas não tinham corrido exactamente como esperava.

Sempre disse que ser assaltado em Luanda era uma questão de quando e não de se, mas este foi tão surreal que nem sei se o conte como assalto. O inevitável acontece, mas este foi muito educado.

Cheguei a casa e só tinha vontade de rir. Em Luanda regateia-se com os assaltantes!

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

18 respostas a “Inevitável, mas educado”

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. Caro Afonso,

    É, os ladrões de esticão normalmente desiludem-nos. E quando querem passar por educados, então são um desastre. Se bem que na Luanda de hoje, com toda a gente automobilizada, as coisas também não estão fáceis para os assaltantes de rua. Coitados. Na Luanda recém-independente, início de 1976, também vivi um momento desses. Caminhava a pé, ali no Prenda, quando tês figurões entenderam expropriar-me o relógio, na falta de outros bens expropriáveis. Bons tempos! Tínha-se direito, no mínimo, a uma comissão de festas!
    Os meus melhores cumprimentos.
    elmiro

  2. Afonso,

    Também me aconteceu uma situação semelhante há 2 semanas. Maculusso, 18h30.
    O assaltante foi educado, só precisava 1.000kz. Segundo ele, não me queria magoar.
    Também entreguei os trocos do cinzeiro. Mas como não tenho jeito para regatear, acabei por entregar também 2.000 pois não tinha notas menores. E nem pedi troco.

  3. Até nos assaltos se notam as diferenças entre a Mutamba e o Cassenda… 😉

  4. realmente já não há bandidos como antigamente, pedem desculpa para roubar! O País agradecia que alguns destes madiés bazassem mesmo, que a malta ia buscar os cubanos de novo, que pelo menos esforçam-se e não são tão vaidosos.Portugal mesmo com fome nunca deixou de ser racista!

  5. Quem é que aqui está a ser racista, mesmo?

  6. Ui, a memória do povo é tão curta. Então os cubanos esforçam-se, hein? Vá, roubados mas felizes.

    Pela última vez: nos últimos 35 anos, nem na pior das crises Portugal soube o que é fome.

    A lavagem ao cérebro parece funcionar. A cassette entra, o pensamento próprio torna-se preguiçoso, e as mentiras quando são repetidas muitas vezes tornam-se verdades.

    Isto está bonito, está.

    PS: Afonso, desculpa.

  7. 🙂

    HEHEEH

    não há dúvidas. Vcs os tugas são engraçados. Parecem a versão parva do Serpa Pinto.

  8. Estás bem, é o que importa.

  9. Afonso

    O teu blog faz-me lembrar esta história

    http://santa-nostalgia.blogspot.com/2009/07/o-macaco-de-rabo-cortado-viagens-pelos.html

    Uma pergunta em nada parecida com os comentários racistas e estupidos colocados no meu blog, que tu à boa maneira de certas tretas resolveste incentivar; Tu não és o Afonso que as tunas de todas as universidades portuguesas cantam? Sabes que começo a desconfiar de engenheiros em Portugal. O Angolano não faz exame ao domingo, nem compra canudo em dia santo.
    Fernando Pereira (hoteleiro há muito pouco tempo)

  10. Não, não sou o Afonso que as tunas cantam, nem faço exames ao Domingo. E acredito que o Angolano não o faça, apesar de todos sabermos que há angolanos (os que dão mau nome a Angola) que fazem coisas parecidas.

    Tal como alguns angolanos deixam o restantes com má imagem, também há engenheiros que nos envergonham. O mesmo podemos dizer acerca de todas as profissões, nacionalidades, credos. E é inútil tentar enfiar todos no mesmo saco.

    Quanto aos comentários no Recordações da Casa Amarela; avisei-o de que tinha usado duas imagens sem manter a indicação de copyright e pedi-lhe que corrigisse a situação. Não o fez e acabou por continuar a cortar as imagens como se isso fosse a solução. Senti-me roubado e, ao fim de alguns dias, achei que deveria expôr o que se passava. A sua reacção pareceu-me, no mínimo, infantil. A estupidez ou racismo dos comentários é da responsabilidade de quem os deixou.

    Se lhe copiasse um texto na íntegra e assinasse com o meu nome, não se sentiria também roubado?

    Torno a repeti-lo. Se quiser usar as imagens, indique a fonte. O seu colega de profissão Wilson Dadá fez o mesmo e corrigiu a situação no próprio dia.

  11. Comentários racistas… onde? Não devo estar a ver o mesmo filme que os personagens de inteligência curta que fizeram essas acusações.
    Há sempre pessoas que já estão formatadas para dizer sempre a mesma coisa…os tugas são racistas e exploradores…já para não dizer incompetentes. Pois é… o que vale é que Angola está cheia de Chineses, Americanos, etc, que não exploram o país, nem são racistas e muito menos incompetentes (ironia implícita). Apesar dos Chineses construírem prédios sem fiscalização, trazendo toda a matéria prima e trabalhadores da China, e cujos construtores são pagos a peso de ouro pelo governo Angolano.
    Mas claro que nós tugas é que somos e seremos sempre os maus da fita.
    Enfim…A caravana passa.

  12. O assaltado, afinal, foi o Afonso! Tenham modos senhores ex-colonizados(> 34 anos) e se querem comentar o Aerograma estejam ao seu nível. O sr. F.P. também foi roubado, ou está só a fazer um exercício de angolanidade?
    Renovo os meus votos de felicidades, Afonso.
    Elmiro

  13. «começo a desconfiar de engenheiros em Portugal. O Angolano não faz exame ao domingo, nem compra canudo em dia santo.»

    Vamos fazer generalizações para a conduta de um povo a partir da conduta dos seus líderes políticos?

    Vamos falar sobre “compras”? (http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/cpi/2008, mas também pode ver os anos anteriores)

    Fernando Pereira: a capacidade de admitir os seus erros, já percebemos que não tem. Mas não adopte a táctica da melhor defesa é o ataque, porque só fica pior na fotografia do que já está.

  14. Posso perguntar???
    Que estão a fazer em Angola?
    Filantropismo a troco de umas verdes???
    Não são os primeiros nem os ultimos, mas pelo menos mal na fotografia ficam…Será que são todos Loureiros como os outros…Sabem de quem estou a falar!
    Fernando Pereira ( Talvez não seja o hoteleiro)

  15. Seria hipócrita dizer que trabalho de graça. Os meus patrões angolanos fizeram-me uma oferta que lhes pareceu justa e eu aceitei. A partir daí, é entre mim e eles. Se não estiverem contentes com o meu trabalho despedem-me, se eu não estiver contente com as condições, também tenho bom remédio. É apenas a eles que tenho de apresentar justificações.
    Quem acha que ganhamos demais ou que estamos a roubar lugares aos angolanos, que se proponha a ocupar a nossa posição. Estes treinadores de bancada, que só sabem insultar em vez de meter mãos à obra, parecem sofrer de uma grande dor de cotovelo.

    Mas, por falar em ficar mal na fotografia, quando é que se digna a indicar a proveniência das imagens que me roubou?

  16. Senhor Afonso Loureiro

    Voltei a esta sua casa onde a palavra de ordem é educação e falta de formação civica.
    Veja bem a sorte que o senhor teve e tem.
    Imagine que alguém lhe rouba as fotos das crianças que o senhor fotografou e identificou e que posteriormente publicou neste seu blog e as enviada para as autoridades angolanas e se dignavam indicar a sua proveniência.
    Imagine bem
    JF

  17. Imagine que lia a lei dos direitos de imagem. A angolana, a portuguesa ou a chinesa.

    Respondo por todos os meus actos, não escondendo a minha identidade.

  18. Uma vez que este artigo também já se transformou num fórum em que os comentários nada têm a ver com o assunto em causa, a discussão será interrompida.

    Quem não gostar da decisão, ponha na borda do prato e não coma.

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