Elis Regina, odeio-te!
Afonso Loureiro
Julgo que não estarei sozinho quando escolho a canção Águas de Março como uma das minhas preferidas. A sua cadência, quase chuva, recria uma atmosfera de sonho que nos remete para as brincadeiras de criança e tudo quanto nos marca para sempre. O espantoso poema e o mais que fabuloso dueto de Elis Regina e Tom Jobim fazem dela uma obra-prima.
Os vizinhos do prédio da frente acharam por bem fazer uma festa no terraço e, desta vez, para além das músicas habituais que sacodem o esqueleto, surpreenderam-nos com Águas de Março, quase comemorando o fim do Cacimbo. A noite musical não estava a ser grande coisa, mas deu-nos esperança de que melhorasse.
Umas horas mais tarde, recomeçaram os primeiros acordes, com aquelas duas notas quase desafinadas no piano. Por momentos, todos parámos o que fazíamos e apreciámos o doce embalar da Bossanova que vinha das colunas roufenhas do lado de lá da rua.
Não pude deixar de me lembrar de uma das chuvadas de Março em Luanda, com as ruas transformadas em rios e é pau, é pedra, é um resto de toco, é um caco de vidro…
Mais tarde ainda, quando a noite de Domingo já se tinha transformado em madrugada de Segunda, a festa continuava. Um pouco mais calma, com muita música para dançar devagarinho, agarrado à dama. Uma salutar melhoria em relação ao habitual, temos de admitir, mas nada adequado à necessidade de dormir.
A certa altura, a Elis Regina regressou. O Tom Jobim também. Assim que acabou, recomeçou. E depois outra vez. E outra. E outra. A dada altura, a música ainda estava a meio quando alguém a fazia recomeçar. Comecei a odiar aquela voz que me fala da vida,do Sol e da chuva chovendo. Só conseguia pensar no carro enguiçado e na lama, na lama. E lá vem a canção de novo.
É pau, é pedra,
Que me apetece
Atirar aos vizinhos
E às colunas
Para ver
Se se calam…
Ao fim de seis repetições completas e outras tantas só pelo meio, conseguiram fazer a mesma música tocar quase uma hora seguida. Adormeci a odiar a Elis, o Tom, os seus ascendentes e descendentes até à oitava geração e ainda todos os que alguma vez ouviram falar na música.
Passei o dia seguinte com a canção no ouvido, como seria de esperar…
Que horror, Afonso, vc escrever isso sobre Elis, Tom, e Águas de Março!!! Pelos menos o bom gosto musical dos vizinhos de frente não pode ser contestado, não é? E se fosse “carrinho de mão”, do Gerassamba, como eu ouvi muito?
Obviamente que o título é irónico. Adoro a música e prefiro-a a outras que os vizinhos costumam tocar, mas repetir a canção tantas vezes a altas horas da madrugada é tortura!
E por Lisboa, sabe o que se ouve num fim de semana e mais dois dias quando de um casamento de ciganos? Pela tarde e pela noite fora? Sabe? Sabe? Mania nossa de querer impôr sermos todos iguais quando somos todos diferentes … e chamam-lhe integração!
Mil vezes é pau é pedra é o fim do caminho. Não vai querer decerto trocar, pois não?
Bom fim de cacimbo.
Mil vezes as Águas de Março nas colunas roufenhas. Dez mil vezes a altos berros!