A maldição do relógio
Afonso Loureiro
A certa altura na História do Homem alguém, provavelmente muito bem intencionado, teve a ideia peregrina de medir a quarta dimensão. Não lhe bastava só saber onde estava, queria também saber quando estava.
A princípio, a ideia trouxe benefícios interessantes. As estações do ano podiam ser identificadas não só pelos sinais habituais, mas também por uma contagem independente. Para os agricultores, mesmo que as condições não o prometessem, havia o conhecimento de qual a época apropriada para as sementeiras. Para os caçadores, as migrações passavam a ser acontecimentos cíclicos que não dependiam da aprendizagem individual de inúmeros sinais para serem previsíveis.
A curiosidade levou a ideia longe demais. Para além de usar o tempo para indicar acontecimentos futuros, começou-se também a aplicar as medidas aos acontecimentos passados, os quais são impossíveis de mudar. Depressa se começou a medir a duração da vida e aquilo que sempre tinha sido uma sucessão de dias interminável, passou a ser um número finito de anos e meses, que se escoam a um ritmo seguro, imperturbáveis.
A noção de mortalidade, que já existia, sofreu uma promoção. Passou a ser uma meta que se atinge, mesmo contrariado. O tempo e a noção de mortalidade devem-se ter unido para criar a religião.
O que mais me espanta é que não temos inata esta noção de mortalidade a prazo. Esquecendo calendários e relógios, a cada dia que passa somos apenas nós mesmos, mais experientes talvez, mas nunca muito diferentes do que éramos na véspera. Mesmo que nos digam que temos tantos anos, não acreditamos. Sentimo-nos insensíveis a essa coisa da idade. Ainda não percebi a diferença intrínseca entre ter vinte anos ou ter trinta. Sei que sou uma pessoa diferente, mas não me sinto diferente. Talvez me assuste mais com o número infindável de coisas que ainda quero fazer e com o conhecimento de que a meta não se compadece com os meus projectos.
Nem costumo pensar nisto, mas, tal como dizia, é preciso referências externas para que o calendário faça sentido. Hoje acordei a pensar que a minha mana está quase a fazer anos. Vinte e nove, para ser exacto. Não me pareceram assim tantos e demorei uns segundos até me aperceber que eu também os tenho, e ainda mais alguns. O tempo passa depressa quando estamos desatentos…
Relógio perfeito
O nosso relógio interno está ligado ao Sol e, todos os anos, volta a zero. Faz-nos confusão que tal não aconteça nos calendários. Talvez seja esse o choque que sentimos quando nos apercebemos destas armadilhas. Quando será que tomamos consciência disto?
Quem inventou os relógios não criou uma máquina para contar o tempo que passou. Criou uma máquina que mede o tempo que ainda falta.
Entretanto, e porque o tempo que passou nunca será mais feliz que o há-de vir: Parabéns Bulza!
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