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23  11 2009

Histórias de cigarros

Durante anos foi escutando histórias e episódios de quem tinha vivido em África, Angola em particular. Antigos militares, civis que deixaram a terra temendo pela vida e angolanos na diáspora foram descrevendo este país, um pormenor de cada vez, mas, acima de tudo, falavam das suas gentes e costumes.

Lembro-me de, em pequeno, ter ouvido falar do modo peculiar como as mulheres fumavam, mordendo o cigarro ao contrário, com o morrão para dentro, cuspindo a cinza por um canto da boca e fazendo sair o fumo pelo outro. Diziam que era por ser mais prático fumar assim enquanto se trabalhava no campo, curvadas de enxada na mão, com o filho às costas. Os homens, ao que parece, fumavam com os cigarros para o lado normal.

Na minha estadia em Angola, poucos angolanos tenho visto a fumar regularmente. Quase sempre só jovens, no intervalo das cervejas. Alguns velhos, por vezes. Mesmo na província, os únicos fumadores inveterados com quem me cruzei foram russos e chineses, umas verdadeiras chaminés, uns e outros.

Mulheres a fumar têm sido ainda menos, daí que a cena com que me deparei há uns dias me deixou a olhar embasbacado.

Parado no meio do trânsito, como de costume, reparei numa mais-velha, de aspecto frágil, sentada à sombra de um carro estacionado a revolver um bibe verde-alface à luz do Sol que lhe iluminava as mãos. Dava-lhe voltas, sempre com as costas encostadas à parede fresca, afastando o tecido dos olhos, provavelmente por já ver mal ao perto. De cabelo branco e muito enrugada, contrastava com as três crianças luzidias só de cuecas que, de pé, não lhe chegavam à cabeça. Segurava qualquer coisa na boca. Primeiro pensei que fosse uma agulha e que procurasse coser um qualquer rasgão na roupa de um dos miúdos. A posição em que tinha a cabeça e a sombra escura não me deixavam perceber o que era. Vi-a soltar uma baforada de fumo, como quem enxota uma mosca com um sopro pelo canto da boca. Percebi que as gentes das histórias que ouvi há decadas não mudaram…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “Histórias de cigarros”

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  1. Já não me lembrava dessa imagem.
    As mulheres Ganguelas das Terras do Fim do Mundo tinham esse hábito. Eram mesmo só as mais velhas que assim fumavam. Fazia-me confusão:
    – primeiro porque não percebia como chupavam para extrair o fumo do cigarro;
    – depois imaginava que queimariam a língua com o morrão aceso;
    – ou que molhando-o com a saliva o estragariam;
    – e achava que o fumo teria outro sabor, para não falar
    da técnica especial usada para manter o cigarro acesso, compensando de alguma forma a escassez de oxigénio dentro da boca fechada.
    Hoje, parece que o hábito ainda se mantém. Mas continuo com as mesmas interrogações e perplexidades.
    Pelos nossos lados, também havia hábitos estranhos com o tabaco:
    – moído, era rapé que só as velhas inalavam;
    – as folhas secas eram mascadas pelos velhos que iam cuspindo a parte liquefeita.
    Esses costumes, contudo, parecem ter desaparecido, não fazendo parte dos hábitos dos novos velhos.
    De comum, aí como cá, o facto de serem sempre os mais velhos a tirar prazer desses hábitos estranhos.

    Abraço

  2. Desde que cá cheguei, e já lá vão 3 anos, que vejo regularmente essa cena, de as mais velhas fumarem ao contrário, o que acho incrível.

    Só para terem uma ideia, o gosto e cheiro que fica na boca, é intragável. O fumo parece que sobe ao cerebro.

    Quando fiz tropa, há já uns bons 18 anos (cof, cof), eu, que na tropa fumava imenso, tanto era o tempo livre, fui ‘apanhado’ a fumar sem pedir autorização ao tenente que dava a recruta.

    Castigo: fumar um cigarro ao contrário e, para piorar, ter de o apagar aceso, dentro da boca. É uma sensação desumanamente horrível, tanto que no fim temos de ir deixando a saliva encher lentamente a boca, sem a engolir, para não queimarmos a lingua.

    Bom, apagar sem me queimar, apaguei, mas juro que durante uma semana fiquei sem a minima vontade de fumar. Parecia que andava fumo a ‘boiar’ no cerebro.

    Daí achar esta técnica verdadeiramente formidável, admito…

  3. A primeira vez que as vi fiquei fascinada, Maria Hambomba e Luzia, elas fumavam para “dentro”!!
    Moravam no fundo daquela rua enladeirada por tráz da minha casa, lá para os lados do matadouro.
    Luzia, muito séria, limpa e alinhada com a sua roupa bakongo, não dava muita confiança à miudagem e nunca me lembro de a ver rir, mas Maria Hambomba era diferente.
    Maria gostava de malavo, cerveja e de toda a bebida “ardente”. Ria por tudo e por nada e fumava para eu ver. Adorava-a.
    Num dia de férias e de mercado no Quimbele, a miudagem andava toda na rua, eu sentada no muro da casa quando Maria Hambomba aparece já tropega e a rir muito.
    Pedi-lhe para ela fumar, e para meu espanto ela estende a mão e disse:
    -Paga! Procurei uma moeda que por acaso tinha e dei-lha.
    Cigarro aceso e metido na boca ao contrário, o fumo a saír de lado… adorei, não me cansava de a ver fumar.
    De repente virou costas para dscer a rua, mas com tanta bebida “ardente” tropeçou, e a rebolar lá vai ela pela rua abaixo e só parou porque embateu num pedregulho.
    Apavorada, fui correndo atrás dela e ajudei-a a levantar.
    -Estás bem? Não estás magoada? E o cigarro, Maria engoliste-o? Deu uma gargalhada e “revirando” a língua, mostrou-me o cigarro que lá continuava aceso!!
    Querida Maria Hambomba!!!

    PS- Mais uma vez a sua crónica é muito realista. Fantástica

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