Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

12 2009

Finalmente chove

Depois de algumas semanas a sentir a pele pegajosa de tanta humidade, os dias começaram a amanhecer cada vez mais escuros. O céu prometia chuva, mas não havia maneira de cumprir.

Algumas pingas nocturnas, que poderiam ser confundidas com uma eventual inflamação prostática celeste, não fora tal orgão ser conspicuamente ausente na atmosfera, avisavam que o dia da chuva estava perto.

Chuva nocturna

O dia chegou. Choveu. Primeiro gotas tímidas. Depois gotas grossas de umca copiosa chuva tropical e quente. Sem relâmpagos desta vez. Depressa as ruas se transformaram em rios, com os carros a levantar grandes ondas que varriam os passeios. Onde não há asfalto formaram-se poças de lama vermelha com profundidade indeterminada e aspecto pouco convidativo.

Carro levantando água
Esgotos e chuva misturados

Os esgotos começaram a transbordar, transformando a água da chuva feita água de valeta em água cinzenta pestilenta que deixa os peões sem saber se hão-de tapar o nariz ou proteger a cabeça. As ruas da baixa transformaram-se em rios, arrastando lixo e lama em direcção à baía.

Mulher com casaco sobre a cabeça
Recolhendo passageiros nas ilhas

Gente apressada enruga a testa para que a água não lhes escorra para os olhos. Encharcados até aos ossos procuram abrigos temporários que evitem sentir as gotas bater no corpo. Está calor e a chuva morna, mas as caras com que nos cruzamos mostram pessoas transidas de frio. Jovens fugiam do jogo de basquetebol com a roupa colada ao corpo. Não interessa quem ganhou, é preciso fugir da chuva.

Rua inundada
Fugindo da água

À medida que a água enchia os passeios e as ruas, peões e carros passaram a partilhar o centro das faixas, uns evitando pisar lixo ou tropeçar em pedras, ou outros a tentar manter as rodas fora de buracos submersos.

Chuva torrencial
Procurando abrigo

Os vendedores que usam os passeios como bancas abandonam a mercadoria e abrigam-se aos cinco e seis debaixo de um guarda-sol. Ficam todos de pé, encostados uns aos outros a ver chover. As revistas tinham um plástico por cima, mas a água encheu a depressão do passeio e ficaram submersas. Ao lado, uma dezena de pares de sapatos perfilados enchiam-se de água. Sapatos de senhora brancos imitavam copos. Dois vendedores partilhavam uma dose de whisky vendido em bolsa de plástico enquanto viam as revistas desaparecer.

Jantes cromadas no charco
Contrastes

Os polícias de trânsito que, desde há uma semana, passaram a andar com as bolsas dos impermeáveis presas no cinturão, vestiram as suas capas brancas que os cobrem da cabeça aos pés. Nos cruzamentos, só com as luvas brancas a sobressair das mangas da capa de plástico, imitam bonecos de neve. Não consigo deixar de me lembrar das decorações natalícias que começam a surgir na cidade.

Carro do lixo à chuva
Esperando que a chuva passe

Choveu e depois parou. A cidade ficou virada do avesso. Há ruas intransitáveis. Há negócio de cadeirinhas, que cobram alguns kwanzas para carregar pessoas às costas e atravessar as poças mais fundas. Há negócios de portagem em pranchas colocadas sobre os lamaçais. Quem não quiser pagar pode muito bem ver-lhe retiradas as tábuas e ficar preso no meio da rua. Ou paga ou suja o pé. Carros atolados e viagens mais caras. O fim-de-semana vem já aí.

Fugindo da lama
Rua enlameada

Em Luanda chove poucas vezes, graças ao seu clima muito particular, feito de encomenda para uma cidade sem esgotos a funcionar. Mas quando chove, os estragos são evidentes. Estou certo que os jornais vão dar conta de pessoas que perderam as casas ou de mortes por afogamento. Há muitas casas construídas sobre linhas de água, em virtude da construção desregrada um pouco por todo o lado. O que é lamentável é que são tragédias evitáveis.

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Finalmente chove”

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  1. Em tempos idos lembro o gozo infantil destas valentes chuvadas tropicais. Muitas vezes corria para o pátio do quintal e era uma festa de alegria com as minhas irmãs a dançar à chuva. Uma das maiores que aí apanhei já bem crescidinha e casada estava-se na praia e foi soberbo! O regresso a casa é que foi caótico e entramos de sapatos na mão a atravessar a estrada onde corria um rio mal cheiroso que ainda hoje me agonia. Contrastes incríveis sempre marcaram a minha vida por aí. Nestas minhas últimas estadias apanhei algumas chuvas já mais grossas e saltou-me a vontade de repetir a façanha de outrora. Poucos segundos gozei do prazer de sentir os grossos pingos a picar a pele. Em pouco tempo os ladrilhos limpinhos do chão que me rodeava estavam imundos de lama barrenta. Lavaram-se telhados e eu apercebi-me da infinidade de pó que envolve a atmosfera de Luanda actualmente. Agora o cheiro da mistura de águas mais limpas da chuva e das mais imundas dos esgotos é mau, muito mesmo, mas ainda assim esse recordo bem pior por alturas da guerra em que o lixo das lixeiras em plenas ruas da cidade e a céu aberto corria com as águas escuras que nem deixavam ver onde se pisava e enquanto uns se descalçavam para não estragarem o par de sapatos que tinham levado para passar uns dias, outros gritavam para se ter cuidado que mais valia ficar sem sapatos do que cortar um pé nalgum vidro ou lata que o chão sempre depositava nessa altura, passo sim passo não. Deve ter sido a travessia mais perigosa que fiz até subir os degraus para entrar em casa lol
    Desta que relata livrei-me eheheheh mas não me esqueço que a última vez que embarquei começou a cair aqui em Lisboa uma carga de água quando o autocarro estava a chegar ao avião e na atrapalhação do trajecto a que se juntou um vendaval vindo não sei de onde, até se ficar a seco, eu fiquei que nem um pinto e acabei por fazer a viagem com a humidade no corpo coberta pela mantinha a pensar cá para os meus botões que talvez fosse estágio de preparação para a humidade que há aí. Não pensei foi que me esperava outra à chegada. Desembarque a sentir o peso das nuvens carregadas e molha depois até ao carro que não estava perto, com a ida para casa caótica do trânsito ainda mais engarrafado e as paisagens atoladas como fui revendo das fotos que colocou. Para a próxima se chover faço como um que foi o último a entrar no avião, porque se recusava a sair do autocarro se não fossem buscá-lo com um chapéu de chuva e atrasou ainda mais a partida. O pessoal que tinha janela a ver a cena e tudo a rir e e ele nem aquela da viagem molhada viagem abençoada o calava que o autocarro não podia parar tão longe e blá blá blá. Gostava de ter sido mosca para o ver na saída aí de novo com chuva.

    Ai credo, alonguei-me de novo e o importante era mesmo só dizer que não entendo mesmo como é que tanto se atrasa o saneamento básico e pouco se faz para melhorar as tragédias como tão bem diz. Nem o CAN ajudou né? Havia era de chover muito em Janeiro!

  2. Maré,

    Como sempre, um comentário que merecia ser promovido a artigo. Obrigado pela partilha das memórias.

    Também gosto de andar à chuva e de sentir as gotas a bater na cara. A chuva tropical tem a vantagem de ser quente. Em Abril aproveitei uma chuvada a meio da tarde para ir até à marginal. Depois foi difícil regressar, porque as ruas estavam todas inundadas…

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