Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

12 2009

Censura

Oficialmente, em Angola não há censura. A liberdade de expressão está consagrada na constituição e não existem mecanismos oficiais que restrinjam o seu exercício.

A realidade, no entanto, está bem longe de ser o mundo idealizado na legislação. Num mar de tubarões não convém dar muito nas vistas e apontar os defeitos de quem tem mais dentes. Nunca se sabe como ou quando dão a sua dentada.

Há sempre vozes que se levantam, na sua maioria anónimas e gritadas de trás de uma moita ou identificadas, mas proferidas de um qualquer cantinho onde se espera que os tubarões não cheguem. Aos poucos, os que nadam no lago e abrem a boca vão-se censurando a si próprios, receando não sabem bem o quê. Vão refreando palavras, escondendo ideias ou esperando que outros tomem a iniciativa.

A propósito desta situação, vem a parábola da experiência com os macacos, em que penduram um cacho de bananas num escadote electrificado numa jaula com cinco macacos. Sempre que tentam chegar às bananas apanham um choque, até que desistem de lhes tocar. Nessa altura, retiram um dos macacos e introduzem um novo que se dirige logo às bananas, mas é impedido pelos restantes, que já sabem ser uma experiência dolorosa. Quando esse macaco também desiste de comer as bananas trocam outro dos mais antigos e vão-no fazendo sucessivamente até que já não reste nenhum dos macacos originais. Os que agora ocupam a jaula não sabem que o escadote lhes dará um choque, mas recusam-se a comer as bananas.

No Aerograma publiquei alguns artigos que causaram alguma polémica, insultos e até mesmo ameaças veladas à minha integridade física. Apesar de estar apenas de passagem, senti-me atirado ao tal lago dos tubarões o optei pela estratégia mais segura, com o amargo de boca que é sentir-me amordaçado por mim mesmo.

Esta situação levou-me a pensar numa série de assuntos, incluíndo as diferenças civilizacionais actuais. Por vezes, esta história de não se querer ofender ninguém tão arreigada na sociedade ocidental, acaba por nos ofender a nós mesmos por ter de aceitar que nos ofendam, numa versão verbal do dar a outra face.

Como facto curioso que ilustra bem como funciona a auto-censura, a agência noticiosa angolana permite comentários às notícias que publica no seu sítio internet. Não lhes faz qualquer moderação ou censura, o que permite a publicação das coisas mais desprezíveis e insultuosas pelo meio de comentários pertinentes. Algumas pessoas levam tão a peito a liberdade de expressão que se esquecem que, como qualquer liberdade, termina quando começa a do próximo. O escudo no anonimato no seu melhor. No entanto, esta liberdade de comentar termina quando são publicados comunicados oficiais ou discursos do presidente, numa espécie de auto-censura da agência.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Censura”

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. Um post difícil, corajoso, realista, que só incomoda quem usa e abusa do poder e da chantagem, que são das armas mais perigosas e aquelas que mais contribuem para que se atrase o processo evolutivo de um país que se quer desenvolver e que ainda que com muitas restrições de entrada, precisa de estrangeiros, num arranque em que se paga uma factura demasiado elevada para colaborar. Nos dias de hoje, pergunto-me muitas vezes como podem olhar para quem aí vai trabalhar, mesmo que a ganhar o dobro ou até mais do que ganha aqui, como os usurpadores de riqueza que faz a mossa e retira a quem precisa. Mas que têm que se desunhar com preços que chegam a disparar para 4 e 5 vezes mais nos bens de consumo essenciais, tem que se sujeitar a limitações alimentares senão o que ganha a mais de nada serve nem acrescenta poupança, limitações laborais que exigem que os horários se prolonguem para 14, 15 horas diárias, de segurança porque há locais onde é mesmo melhor nem arriscar e mesmo fazendo tudo direitinho é uma questão de sorte ou azar de estar no local errado à hora errada, de transporte e só quem conhece a loucura do trânsito aí pode avaliar, até limitações no lazer do pouco tempo que sobra para isso e do que é preciso gastar para conseguir alguma qualidade num simples jantar fora com amigos, sobram algumas praias e pouco mais que a mim ninguém me apanha a abanar o capacete e tardiamente ter que ficar sem carteira só para voltar para o carro. Ter que encarar os inúmeros sacrifícios necessários a uma adaptação longe dos seus com uma determinação heróica para não desistir porque é duro, é difícil, é brutal e o modelo comparativo que se deixa para trás e que até é bem limitado e muitas vezes nos indignava, passa a ser o paraíso para onde se sonha voltar para limpar a cabeça e a contar os dias no calendário que faltam para regressar onde se sente que pertence.
    Não sei como, mas a corrupção tem que ser travada de alguma forma e se vai melhorando alguma coisa no dia a dia relativamente aos estrangeiros é porque muitos passaram da fase aflitiva do receio a preferir dispender horas em autênticos nonsense nas esquadras para não alimentar multas fictícias e não largar logo às primeiras os dólares ou quanzas que resolviam sem mais chatice. É um princípio. Se bem que depois a parada também sobe à medida dos galões e muitas vezes se fica com a sensação de que mais valia termo-nos poupado ao tempo e desgaste por que acabamos por passar.
    Luanda é a sede de uma corrupção evasiva e lá imagina Afonso o que dói fundo a quem a sente tanto como eu e tem por característica uma sensibilidade que não quer deixar corroer. Pois imagina bem sei, mas verti muitas lágrimas aí na constatação de contrastes absurdos e emagrecimento de esperanças de melhores dias. Vivi aí no tempo da censura em que se ouvia Zeca Afonso na surdina e muito pequenina sabia do que não podia contar, mas aprendi que a luta pela liberdade não nos permite depois conseguir voltar a ter as asas presas até porque o meu negócio é voar e planar a olhar o mundo na procura da felicidade de o contemplar com gosto. Mordaças é coisa que nos dias de hoje em que o mundo se abre e de todos se precisa, algo não faz sentido. De alguma forma esse desabrochar de gente sem fronteiras, mesmo onde elas se mantêm, vai implicando evolução e ainda que em câmara lenta a tendência será para que o feitiço se possa virar contra o feiticeiro. À letra, quem censura mais tarde ou mais cedo será censurado.

    Mais uma desgraça de comentário longo! Algo a que só daqui me posso permitir porque aí a net no local onde vivo é mais minutinho até já era. O inverno tem este dom de me tornar mais caseira por cá e tenho gostado dos pedacinhos de serão em que posso sem pressas sentar-me a navegar e ler os cantinhos que tanto gosto sem ter que ficar pela metade com os solavancos da rede e no único em que respondo, dê-me o desconto do que às vezes gostava de poder aplaudir e me calo. Hoje não calei e muito bem postado. É que também partilho da ideia de que é uma ofensa demasiado penosa para quem tem consciência encolher-se como os macacos.

  2. Em liberdade, cada um vê o que escolhe ou, pelo menos, tem o direito de se recusar a ver o que não gosta. A censura transforma-nos em cegos, fechando os olhos a todos.

    Infelizmente, há quem julgue que a sua liberdade é maior que a dos outros.

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