A balança
Afonso Loureiro
Para os estrangeiros, a vida em Luanda tem de ser encarada como se de uma balança se tratasse. Chegamos à capital angolana com o fiel a indicar o equilíbrio e, a partir daí, temos de procurar viver as coisas de modo a que os pratos não se movam desmesuradamente para nenhum lado.
Problemas e alegrias têm de ser cuidadosamente pesados para que não vejamos tudo através de óculos cor-de-rosa ou pintado de negro.
De início, as coisas más são insignificantes, relativamente ao peso das novidades, mas são sólidas, ao contrário das outras, que se evaporam lentamente. Se não tivermos cuidado, o prato que compensa os amargos de boca fica vazio e ameaça tombar, arrastando consigo toda a balança. Se esse momento chegar, seremos incapazes de encontrar coisas boas que compensem as más e o fim da estadia em Luanda estará próximo.
Há que manter o fiel perto do equilíbrio
Há dias em que damos por nós a reclamar de pequenas coisas que, em circunstâncias normais, seriam apenas isso, pequenas coisas. Quem estiver de fora e nos ouvir poderá pensar que são exageros desmedidos ou que damos demasiada importância a insignificâncias. São essas insignificâncias que acabam por fazer tombar a balança. Mais um insulto racista na rua, mais um dia de trânsito infernal ou voltar a faltar a electricidade durante o fim-de-semana inteiro, a impunidade de alguns e o sofrimento de outros, uma noite em claro por causa dos escapes das motas, um polícia ou funcionário público compreensivo que quer arranjar solução rápida para os nossos problemas, mais crianças sem futuro a brincar descalças no lixo, hospitais cheios de doentes e vazios de medicamentos, as m’baias dos candongueiros, a corrupção pequena e a corrupção grande, jantes cromadas do jipe de último modelo a partilhar a poça de água escura e cheiro a esgoto com os pés da zungueira de filho à costas, os polícias a distribuir pauladas às mulheres que vendem na rua em frente às lojas de marcas de luxo, o encolher de ombros do «Isso é Angola!», o orgulho e a falta de brio, a miséria, a miséria absoluta e o sentimento de impotência para lidar com tudo isto. Isoladamente seriam apenas pedacinhos, mas são pedacinhos atrás de pedacinhos que se vão juntando num só prato e que raramente conseguimos que saiam.
Acabamos por viver num dilema, sem saber se devemos contar tudo e passar por exagerados ou mentirosos, ou continuar a relatar meias-verdades e mostrar os pratos da balança equilibrados ao mesmo tempo que escondemos o dedo que os segura no sítio.
Felizmente que desabafar ajuda a reequilibrar as coisas.
Excelente post/aerograma!
Desabafar é necessário para continuar a manter o equilibrio… sei que o dia-a-dia é bem pior aquilo que contas e dizes é maquilhado com pós cor-de-rosa mas esconder o cinzento e o negro.
Conta, fala e diz o que vai na alma… estou sempre disposta a ouvir.
Beijo
Bem sabes que conto sempre contigo!
Só mesmo tendo pequenos desabafos se consegue suportar tantas coisas, quanto aquelas que descreve Afonso, apenas quem vive este dia a dia consegue entender todo este misto de sentimentos,mas só relatanto a verdade da forma como o faz se transmite a vivência neste país.
Quando falamos de Angola, o que nos dizem é que estamos no “El Dorado”, não percebem e muitas das vezes duvidam do que descrevemos!!!!!!!
Contínue…
É interessante ler este post, seguido do que o precede, ou vice-versa.
O que me custa mais a entender é de facto a aversão que Angola e os seus têm ao estrangeiro, ao turista (palavra conhecida, mas o seu significado, obviamente, é desconhecido).
Dá vontade de rir e ser (muito irónico) quando um policia nos manda parar de tirar fotografias ao…mar.
Juro! foi comigo, e eram só fotos à água…
Afonso, e este post, consegue juntar tantas verdades. Mas também acredito, no equilíbrio mesmo que às vezes tenhamos de transparecer as tais falsas verdades.
Miguel A., no meu caso, ao tirar fotos profissionalmente falando, os angolanos que viram e que me julgavam talvez “estrangeira” comentaram entre eles: ah, isto é para ir mostrar e falar mal de Angola lá para o país dela, quando a foto era apenas a uma vedação… azul. Cor que até me agrada, futebolisticamente falando. :o) E às minhas explicações que não era nada disso, continuaram a insistir que se a polícia me visse, levavam a máquina e por aí fora. Mas muito convictos de que isso, era o correcto a fazer neste meu caso perdido. Onde já se viu fazer uma barbaridade destas! Até que desisti e fiz o tal encolher de ombros, que o Afonso refere. Eu sinto racismo por ser branca quase todos os dias. Os angolanos em PT também o devem sentir, tenho a certeza e em “quantidades” maiores por vezes. E por isso, sigo em frente e vou à minha vida. :o)
Mas claro que sim, estrangeiro só diz mal de Angola e só tira fotografias às coisas más. Há uns que até andam para aí a dizer que comem lagartas e tal…
O que vale, é que ninguém acredita em metade do que dizemos e a outra metade só aceitam para não nos sentirmos mal.