Desconfiança
Afonso Loureiro
Um dos maiores entraves ao desenvolvimento de Angola é a desconfiança que os angolanos têm deles próprios. Não se trata de questões de racismo ou tribalismo que, talvez por serem mais evidentes, se conseguem ir corrigindo ou, pelo menos, mascarando.
Modo geral, os angolanos são afáveis e tratam-se bem uns aos outros, a menos que detenham alguma forma de poder. Aí, todos passam a ser inimigos e devem estar a conspirar para lhes ocupar o lugar. Diz o povo que cada um sabe como lá se chegou. Todos aspiram chegar a chefe e olham com desconfiança quem almeja o mesmo. Os rivais não são tolerados e quem está abaixo é mantido no seu lugar e relembrado constantemente que não é aconselhável exprimir as ambições.
O clima do salve-se quem puder que a guerra civil trouxe marcou várias gerações e os angolanos habituaram-se a matar para não ser mortos em todas as ocasiões. Vemos esse espírito no trânsito, com manobras incríveis para ganhar um lugar, na pequena corrupção para poder ser atendido primeiro, nas cotoveladas nas filas ou nas motas a circular por onde calha. Corrupção, impunidade e falta de civismo são marcas da guerra.
Na boca do povo
O cada vez maior fosso entre os que têm tudo e os que nada têm agrava ainda mais este clima de desconfiança. Os chefes têm a certeza absoluta que estão a ser roubados pelos empregados, quer sejam 50 Kz no táxi ou um saco de limões no bar. Às vezes têm razão, porque os próprios empregados acham que o pequeno roubo não será notado pelo patrão, que já tem tanto. Infelizmente, o pequeno roubo acaba por se tornar hábito e os que não o fazem acabam por se sentir idiotas ao ver os colegas fazê-lo sem represálias. Parte do problema resolver-se-ia dando condições um pouco melhores aos empregados e punir com justiça os menos honestos, mas grande parte dos patrões prefere pagar muito mal e reclamar que os empregados não prestam.
O clima de desconfiança está tão enraizado que até se desconfia das empregadas domésticas, figura na qual se deveria depositar inteira confiança, uma vez que se lhe dá acesso à nossa casa. Ao invés de pedir referências, tranca-se os valores ou combina-se um horário em que haja gente em casa. Novamente, paga-se muito mal, só para o caso da empregada não ser honesta. Como se desconfia que a senhora até roube comida, os frigoríficos vendidos em Angola têm chaves e fechaduras, como os que há nos hotéis.
Desconfiança institucionalizada
Se a empregada rouba comida, talvez seja para a comer, o que poderia significar que o salário é demasiado baixo. Em vez de se corrigir a situação e pagar bem a uma empregada de confiança, despede-se aquela e contrata-se outra pelo mesmo preço. Os patrões continuarão a desconfiar das empregadas e as empregadas a sentir-se exploradas pelos patrões ao ponto de acharem lícito roubá-los.
Todos estes problemas são mais evidentes em Luanda, porque aqui a guerra civil ainda não acabou. Já não há disparos nas ruas, mas o modo de funcionamento da cidade ainda está condicionado pela guerra. Talvez a situação melhore com a geração que cresceu depois da paz.
Não consigo deixar de pensar que é um pouco triste que só se encontrem frigoríficos com fechadura. É a admissão da derrota numa rendição incondicional. Os próprios angolanos acham que os demais são ladrões. Mas lá está, também há quem diga que não se consegue ter um milhão de dólares de forma honesta.
Essa de fechaduras nos frigorífico (ou cadeados improvisados, só vi em Cuba, embora aí era mais porque os apartamentos não tinham porta na escadaria. Estou a falar de prédios antigos de 2-3 andares que nos anos 50 eram habitados por uma só familias, e depois da revolução foi ocupado por 5-6 familias.
 desconfiança entre “classes” (patrão-empregado) está muito bem retratada nest post. Há ainda outro tipo de desconfiança, entre angolanos e estrangeiros quando se pretende constituir uma sociedade empresarial. Será consequência da guerra colonial ou apenas porque toda a gente desconfia de toda a gente ?
Aplaudo e tiro o meu chapéu! Parabéns.
Sempre assim pensei enquanto aí vivi.
A questão, caro Afonso, é que a paz foi feita com a humilhação de uma das partes e ainda hoje aqueles que se apropriaram do poder se proclamam senhores absolutos da verdade. Isso só pode gerar desconfiança. Por enquanto.
Um abraço.