A terra dos paupérrimos
Afonso Loureiro
Antes de passar ao que interessa preciso de introduzir um pouco de teoria. Servirá não só para compôr um bocadinho a estrutura do artigo, o que é vulgarmente designado por encher chouriços, mas também para ajudar a perceber as coisas estranhas que se passam nesta casa, para além dos ratos, mosquitos e baratas, claro.
A história começa há mais de um século, no meio da casmurrice de dois senhores ligados ao progresso tecnológico da humanidade, de seus nomes Westinghouse e Edison. A rivalidade entre as suas empresas e, acima de tudo, sobre qual a norma de fornecimento de electricidade que vingaria, ditou manchetes de jornais, vinganças, sabotagens e outras desventuras. Edison defendia que a forma mais vantajosa de usar electricidade era sob a forma de corrente directa, do mesmo tipo da que é produzida por pilhas ou dínamos. Westinghouse apoiava a ideia da corrente alternada, sugerida por Tesla, o protótipo do cientista louco. A solução mais segura e económica acabou por ser a corrente alternada, para grande desconsolo de Edison.
Uma das grandes vantagens da corrente alternada é que só precisa um fio para levar energia até ao local de consumo, ao contrário dos dois da corrente directa. A electricidade, em vez de ir por um fio e voltar por outro, vai e volta por um só fio. Na verdade, a electricidade sai das centrais em três cabos, o que poderia parecer um desperdício, mas estes três condutores equivalem a seis de corrente contínua porque o retorno à central não necessita de cabos.
Para a mesma energia transportada, quanto maior a tensão, menor é a corrente que passa nos condutores. Por isso, quanto mais elevada for a tensão de transporte, menor será a corrente, menor o aquecimento que provocam e, portanto, menor o diâmetro mínimo dos cabos para suportar esse calor, o que implica menos dinheiro investido em material. A corrente alterna facilita muito as mudanças de tensão, pelo que se produz electricidade a uma determinada tensão, se transporte a uma tensão muito mais elevada para evitar perdas e, finalmente, se converta para uma tensão baixa e mais segura para utilização doméstica.
Os três cabos, a que se dá o nome de fases, ligam as centrais aos postos de transformação. Em teoria, estes cabos apenas levam energia até ao transformador. O retorno do electrões é feito pela terra, embora ainda não me tenham dito como cada electrão sabe para que central se há-se dirigir… As cargas, isto é, os consumidores, são distribuídos de forma a equilibrar os consumos em cada fase. Por questões de segurança, do posto de transformação até às casas a energia segue em dois cabos, como aconteceria com a corrente contínua. A um chama-se fase, que é o que leva energia, e ao outro chama-se neutro, por onde se dá o retorno e está ligado à terra, dentro do posto de transformação. Com o circuito aberto, um é perigoso e o outro é só um fio. Os mais perspicazes já devem ter percebido que podem ligar a tomada da televisão à terra e à fase que, se tudo correr bem, trabalha na mesma. É essa a magia que faz funcionar os busca-pólos. Tocamos na fase com a ponta da chave e o nosso corpo fecha o circuito com a terra, acendendo a luzinha.
Alguns sistemas de protecção, chamados de diferenciais, comparam a quantidade de electricidade que passa em cada fio e, caso não seja a mesma, cortam a corrente, pois significa que há uma fuga em qualquer lado, quase sempre provocada por alguém que meteu os dedos onde não devia. Porque nem sempre estes sistemas estão disponíveis e pode haver avarias nos aparelhos que causem choques aos utilizadores, há instalações protegidas com circuitos de terra. No fundo, cria-se um atalho para a electricidade que, em vez de usar o nosso corpo para fazer ligação e nos dar um belo esticão, segue um caminho mais fácil, num circuito paralelo ao original que não regressa ao posto de transformação, mas sim a um robusto eléctrodo de cobre que se enterra algures. Nas instalações mais antigas, nem sempre é fácil instalar um eléctrodo de terra. Há soluções de recurso, uma das quais é conhecida como terra dos pobres, que consiste em ligar o circuito de terra aos canos da água. Funciona bem quando são de ferro ou cobre mas, em instalações um pouco atabalhoadas, podem implicar que se apanhem choques quando se abre uma torneira.
Depois desta introdução que tomou vitaminas em pequenina, chegamos ao ponto em que começa a ficar grande demais e tenho de começar o relato das coisas estranhas que sucedem cá em casa antes que me perca.
Há uns meses, o fogão começou a fazer disparar os disjuntores quando se utilizava a rede pública, mas se usássemos o gerador tudo funcionava normalmente. Chamou-se o electricista, que mexeu nalgumas coisas, olhou de lado para outras, assobiou às mulheres que passavam na rua, foi almoçar e voltou para cobrar 100 dólares. No final do dia deu o problema como resolvido. Desde essa altura que, quer de gerador, quer de electricidade pública, as coisas funcionaram com normalidade. Até que começou o tempo húmido. Subitamente, com a rede pública as coisas funcionavam, mas com o gerador havia uma sobrecarga no fogão. Situação incompreensível a todos os níveis.
Suspeitávamos que, devido à maior humidade no ar, houvesse uma pequena passagem de corrente para o circuito de terra no fogão e que o electricista tenha trocado de posição as fases que alimentam a casa, colocando o fogão numa com menos perdas até ao posto transformador. Como o gerador da central eléctrica é muito mais potente que o nosso de emergência, é capaz de alimentar esta perda sem notarmos quebra de tensão apreciável. É claro que se medirmos a tensão numa tomada não temos nada parecido com os 230 V esperados, tantas são as perdas deste tipo ao longo da rede. Se tivermos sorte, 205 ou 210 V.
Para satisfazer a curiosidade, resolvemos desligar o fogão da tomada. O que descobrimos não nos deixou animados. O eléctrodo de terra dos pobres acabou de se tornar numa jóia cintilante ao lado desta maravilha da técnica e do improviso. Três pregafusos enfiados na parede a formar um triângulo seguram um pedacinho de fio miseravelmente oxidado. A isto chama-se a terra dos paupérrimos.
Pesadelo electrotécnico
Talvez se trate de uma nova abordagem aos circuitos de segurança. Se há fuga de corrente, quer dizer que ela está a fugir. Se está a fugir é porque está a correr e então enfia-se pelo circuito de terra a alta velocidade, faz a primeira curva a voar, com algum esforço dobra a segunda esquina, na terceira quase perde o controlo e nem dá por ter entrado numa armadilha. Ficará a dar voltas dentro do triângulo até se cansar. No final do dia basta-nos ir buscar o arame e sacudi-lo para uma garrafa e recuperar a electricidade perdida, possivelmente para se ir revender no Roque Santeiro como se fosse nova. Ou então não é nada disto e é um verdadeiro mistério como ainda ninguém morreu electrocutado nesta casa.
Hilariante!!!!!
Parece mais uma armadilha para apanhar gambuzinos!
Um abraço.
Felizmente que o unico choque foram os 100 dolares pelo pseudo-trabalho.
Abc
Mais uma demonstração cabal da velha teoria angolana de resolução de problemas ?
Certamente. O cliente quer terra, tem terra.
Se a luz acende, está bom!
Onde digo “gambuzinos” não digo “gambuzinos”, digo gambozinos.
lol.
Palavras para quê: é um artista ‘Mwangolê’…